Introdução
A linguiça frescal representa o principal produto industrializado derivado da carne suína consumido no Brasil, embora ainda seja incipiente seu padrão de identidade no país (OLIVEIRA; ARAÚJO; BORGO, 2005). O produto deve apresentar no máximo 70% de umidade, até 30% de gordura e no mínimo 12% de proteína (BRASIL, 2000).
Um dos aspectos mais importantes relacionados com a linguiça frescal está associada à sua elaboração. Quando a carne é moída e conseqüente exposta ao ar, esta torna-se muito vulnerável a desenvolver uma maior oxidação lipídica (MORRISSEY et al., 1998), que compromete sua qualidade nutricional e sensorial, gerando componentes tóxicos que podem oferecer riscos à saúde do consumidor (LEE; HENDRICKS, 1995; GHIRETTI et al., 1997).
Neste sentido, a utilização de compostos antioxidantes poderia reduzir estes efeitos deletérios, sendo os antioxidantes naturais atualmente mais valorizados para este fim (COSTA, 2005).
O ácido fítico ou inositol hexafosfato, presente em diversos cereais, representa um potente agente antioxidante natural (GRAF; EATON, 1990; EMPSON; LABUZA; GRAF, 1991; LEE; HENDRICKS, 1995). Sua ação está relacionada à quelação do ferro, um mineral catalisador da oxidação lipídica, presente em alta concentração na carne suína. Segundo Ghiretti et al. (1997), no salame Milano e na mortadela o ácido fítico exógeno (adicionado no produto durante sua elaboração) pode ser uma alternativa ao uso do ascorbato sódico para a preservação das características de cor e estabilidade lipídica.
Veiculado principalmente através dos grãos, o ácido fítico endógeno (administrado para o animal através da ração) demonstrou também efeitos positivos na prevenção da oxidação lipídica da carne de suínos alimentados com rações à base de milho, farelo de soja e alta inclusão de farelo de gérmen de milho desengordurado (FGMD), um co-produto da indústria de extração do óleo do milho que contém elevados níveis de ácido fítico (HARBACH et al., 2007).
Todavia, o aproveitamento do ácido fítico dietético pelos monogástricos ainda gera polêmica, não obstante Seynaeve et al. (1999) terem indicado que os animais de estômago simples apresentam satisfatória absorção do ácido fítico, que se acumula principalmente no tecido muscular (SAKAMOTO; VUCENIK; SHAMSUDDIN, 1993).
Neste sentido, o objetivo deste estudo foi avaliar o fornecimento de rações com 50% de inclusão do FGMD, como principal ingrediente veiculador do ácido fítico na dieta, nos períodos de 0 a 21 dia pré abate, sobre a oxidação do pernil e da linguiça frescal.
Material e Métodos
As carnes utilizadas neste estudo foram provenientes de 24 suínos machos castrados de linhagem comercial Agroceres-PIC, adquiridos no início da fase de terminação com peso médio de 75,408 ± 4,407 kg. Os animais foram alojados em baias individuais, onde receberam água e ração à vontade durante o período experimental de 28 dias.
Os tratamentos experimentais corresponderam aos períodos de inclusão de 50% de FGMD na ração antes do abate, sendo: T0 - ração controle (isento de FGMD) fornecida durante quatro semanas; T7 – ração com 50% de FGMD fornecida durante sete dias antes do abate; T14 – ração com 50% de FGMD durante 14 dias antes do abate e; T21 – ração com 50% de FGMD fornecida durante 21 dias antes do abate. As rações controle e com 50% de inclusão de FGMD foram isoenergéticas e isoprotéicas e formuladas visando atender as exigências mínimas dos suínos na fase de terminação, segundo o NRC (1998). A composição e os valores nutricionais das rações estão demonstrados na Tabela 1. Os níveis de ácido fítico foram quantificados no milho, no farelo de soja e no FGMD, segundo metodologia descrita por Latta e Eskin (1980) e modificada por Ellis e Morris (1986).
Tabela 1. Composição percentual e calculada das rações experimentais controle (sem farelo de gérmen de milho desengordurado) e teste (com farelo de gérmen de milho desengordurado).
Os suínos foram abatidos com peso vivo médio de 104,554 ± 4,807 kg num frigorífico da região, seguindo as normas de abate humanitário, dentro da rotina do estabelecimento. Após o abate, as carcaças foram mantidas em refrigeração (4ºC) e 24 horas depois os pernis do lado direito de cada carcaça foram encaminhados ao laboratório de análises de produtos de origem animal da Universidade Estadual de Londrina. Os pernis foram dissecados e os músculos bíceps femoris separados para análise da cor e da oxidação lipídica. O m. semitendinosus foi reservado para o preparo da linguiça frescal, sendo realizadas posteriormente as análises de cor, oxidação lipídica e composição química aproximada do produto processado. Foram preparadas uma linguiça de cada animal, constituindo, portanto, cada unidade uma repetição.
A avaliação da cor e de oxidação lipídica foi realizada na carne refrigerada, mantida a 4ºC durante 14 dias após o abate, e na carne congelada a -5º C aos 62 dias após o abate, sendo sempre protegidas da luz.
A linguiça frescal foi preparada obedecendo à seguinte formulação: 97,171% de pernil; 2,010% de sal refinado; 0,100% de açúcar cristal; 0,703% de pimenta do reino moída e 0,015% de sal de nitrito. Após o preparo da mistura o produto foi embutido em tripas naturais e separado em amostras, sendo estas armazenadas em temperatura de refrigeração (4ºC) e protegidas da luz. Foi realizada a composição química aproximada (matéria seca, matéria mineral e lipídios) e efetuada a avaliação da cor e da oxidação lipídica da linguiça. A avaliação da cor ocorreu logo após o preparo do produto e aos cinco e aos 12 dias após sua confecção e a oxidação lipídica aos 5 e aos 12 dias após a confecção da linguiça. As leituras foram feitas em triplicata e realizadas da porção interna do produto.
A análise de lipídios totais foi realizada através da extração em Soxhlet (INSTITUTO ADOLFO LUTZ, 1985). A avaliação da cor foi desenvolvida através de um colorímetro, baseado no sistema de cor CIELAB: luminosidade (L*), componente vermelho-verde (a*) e componente amarelo-azul (b*), e com esses valores foi possível calcular o índice de saturação (c*) e o ângulo de tonalidade (h*), conforme citado por Bridi e Silva (2009). Para a análise da oxidação lipídica utilizouse o método indicativo de substâncias reativas ao ácido tiobarbitúrico (TBARS), segundo Tarladgis, Pearson e Dugan Junior (1964), modificado por Torres et al. (1986). Todas as análises foram feitas em triplicata.
O delineamento experimental foi em blocos ao acaso (baseado nos pesos médios dos animais no início do experimento), com quatro tratamentos (período de inclusão do FGMD na ração) e seis repetições por tratamento. Os resultados foram analisados através de análise de regressão.
Resultados e Discussão
O FGMD utilizado neste experimento continha 3,39% de ácido fítico na matéria natural, valor semelhante aos encontrados por outros autores (LEAL, 2000; COSTA, 2005) e pode ser considerado a principal fonte de ácido fítico nas dietas experimentais. O consumo total de ácido fítico durante todo o experimento foi de 764,60; 1066,03; 1374,25 e 1643,01 g, respectivamente, para os tratamentos com 0, 7, 14 e 21 dias de inclusão de FGMD nas rações.
Os dados referentes às análises de cor (valores de L*, a*, b*, c* e h*) e oxidação lipídica do pernil dos suínos que receberam os tratamentos experimentais estão demonstrados na Tabela 2 e Figuras 1 e 2, respectivamente.
Tabela 2. Efeito do período de inclusão de 50% de farelo de gérmen de milho desengordurado (FGMD) na ração de suínos na fase de terminação sobre luminosidade (L*), componente vermelho-verde (a*), componente amarelo-azul (b*), índice de saturação (c*) e ângulo de tonalidade (h*) do pernil 14 dias após o abate mantido em refrigeração e 62 dias após o abate mantido congelado.
Não foi verificado efeito de regressão entre os tratamentos (P>0,05) para as características avaliadas. A inclusão do FGMD na ração, determinando uma maior concentraçao de ácido fítico na dieta, não foi suficiente para promover efeitos protetivos distintos à oxidaçao da membrana das fibras musculares, resultando na manutençao de um estatus de cor do pernil semelhante entre os tratamentos.
De acordo com os valores obtidos na avaliação de oxidação lipídica, não houve efeito da ação antioxidante do ácido fítico sobre o pernil. Costa (2005) testou a inclusão de até 40% de FGMD na ração de suínos em terminação durante 28 dias e encontrou uma diminuição na oxidação de 37% entre o tratamento com 0% e 40% de inclusão de FGMD em pernis armazenados sob congelamento. A ausência de efeito no presente trabalho pode ser devido à baixa oxidação durante o período de armazenamento, uma vez que sob baixas temperaturas (refrigeração e congelamento) a intensidade das reações de oxidação diminuem, ou devido ao curto intervalo de inclusão do FGMD (21 dias) antes do abate, sendo este possivelmente insuficiente para permitir alguma ação antioxidante do ácido fítico.
Os dados referentes às análises de composição centesimal e à cor (L*, a*, b*, c* e h*) verificados nos pernis utilizados na produção da linguiça frescal e na linguiça ao 0, 5 e 12 dias após seu preparo estão demonstrados nas Tabelas 3 e 4, respectivamente. Os valores de oxidação lipídica da linguiça nos períodos de 5 e 12 dias após o preparo estão demonstrados na Figuras 3 e 4.
Não foi verificado efeito de regressão (P>0,05) para as características avaliadas nas amostras de linguiça (Tabela 3). A inclusão do FGMD e, consequentemente, ácido fítico na dieta dos suínos não alterou a composição do produto elaborado a partir da carne destes.
Figura 1. Valores de TBARS (mg/kg) do pernil refrigerado durante 12 dias de suínos que receberam rações com 50% de farelo de gérmen de milho desengordurado (FGMD) na dieta em diferentes períodos antes do abate.
Figura 2. Valores de TBARS (mg/kg) do pernil congelado durante 50 dias de suínos que receberam rações com 50% de farelo de gérmen de milho desengordurado (FGMD) na dieta em diferentes períodos antes do abate.
Tabela 3. Efeito do período de inclusão de 50% de farelo de gérmen de milho desengordurado (FGMD) na ração de suínos na fase de terminação sobre a composição química aproximada da linguiça frescal.
Figura 3. Valores de TBARS (mg/kg) da linguiça tipo frescal, armazenada durante 5 dias, proveniente de suínos que receberam 50% de farelo de gérmen de milho desengordurado (FGMD) na dieta em diferentes períodos antes do abate.
Figura 4. Valores de TBARS (mg/kg) da linguiça tipo frescal, armazenada durante 12 dias, proveniente de suínos que receberam 50% de farelo de gérmen de milho desengordurado (FGMD) na dieta em diferentes períodos antes do abate.
Para os valores de cor e oxidação lipídica (Tabela 4 e Figura 2, respectivamente) foi observado que, independentemente do período de armazenamento da linguiça, os diferentes periodos de inclusão do FGMD não influenciou os resultados. A oxidação lipídica foi considerada baixa, provavelmente pela carne utilizada no preparo ter permanecido congelada e protegida da luz, reduzindo a velocidade das reações de oxidação. Outra hipótese pode decorrer da quantidade de sal de nitrito, conhecido como um importante conservante de produtos cárneos (SHAHIDI, 1992), e do açucar utilizado, considerado um codjuvante tecnológico classificado como estabilizante nestes produtos (LARPENT, 1995). Estes dois produtos podem ter sido suficientes para preservar a oxidação lipídica.
Tabela 4. Efeito do período de inclusão de 50% de farelo de gérmen de milho desengordurado (FGMD) na ração de suínos na fase de terminação sobre a luminosidade (L*), componente vermelho-verde (a*), componente amarelo-azul (b*), índice de saturação (c*) e ângulo de tonalidade (h*) do pernil utilizado no preparo da linguiça e na linguiça aos 0, 5 e 12 dias após o preparo.
Apesar do ácido fítico ter ser seu efeito antioxidante comprovado no lombo suino in natura (HARBACH et al., 2007) e no pernil congelado (COSTA, 2005), a inclusão de 50% do FGMD como principal fonte de ácido fítico na ração de suínos em terminação por até 21 dias antes do abate não foi suficiente para determinar efeitos semelhantes na linguiça frescal e no pernil.
Conclusão
Nas condições estudadas a inclusão de 50% de FGMD na dieta de suínos nos períodos de 0 a 21 dias pré-abate não alterou a cor e a oxidação lipídica do pernil e da linguiça frescal.
Referências
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Esse artigo técnico foi originalmente publicado na Revista Semina: Ciências Agrárias, da Universidade Estadual de Londrina (UEL).