A operação de escaldar frangos para facilitar a remoção das penas não é nova e, apesar dos avanços da indústria de alimentos, continua a ser usada por consumidores em diferentes cantos do planeta que, por condição econômica ou há-bito cultural, ainda se dão ao trabalho de abater e limpar suas próprias aves antes de consumi-las. Apesar do crescimento tecnológico na área de abate e in-dustrialização de frangos, o princípio físico que rege o processo de escaldagem industrial é o mesmo que rege o processo doméstico.
Para atender as exigências higiênico-sanitárias pertinentes à sua espécie, as aves, depois de sangradas, são escaldadas com a finalidade de facilitar a posterior remoção das penas, mas apenas se a temperatura ao longo da escaldagem é mantida constante (Northhcutt, 2001, Parry, 1989).
A escaldagem, descrita desta forma ou vista pelos olhos do consumidor, parece algo simples e até primitivo. Em realidade, a situação é bem diferente, pois participa deste processo um conjunto extenso de variáveis que precisam ser adequadamente gerenciadas se queremos tirar dele o resultado esperado; qual seja, uma carcaça livre de penas, sana e sem danos físicos visíveis.
A eficácia do processo de escaldagem é dependente da qualidade do trabalho de pendura das aves vivas, pois é neste momento que se garante a colocação uniforme das patas nos ganchos, detalhe significativo para assegurar uma postura uniforme das aves ante os processo seguintes.
Depois de penduradas, as aves são atordoadas e sangradas, à mão ou com sangrador automático. Qual seja o método usado, o êxito da operação é medido pela consistência na posição, profundidade e extensão do corte do pescoço. No processo manual esta consistência depende da habilidade dos operadores, enquanto no processo automático ela depende da atuação da supervisão do processo e da área de manutenção.
Na seqüência, as aves devem sangrar por um período de tempo que é estabelecido pela legislação local ou pelas próprias empresas, com base na experiência acumulada. Qual seja a diretriz, o que importa, de fato, é que as aves não entrem vivas, ou ainda ofegantes, no tanque de escaldagem. Se isto acontecer, a traquéia, o esôfago, pulmões, papo, moelas e sacos aéreos podem contaminar-se com a água da escaldagem e as carcaças se porão vermelhas. Adicionalmente, os pulmões podem colapsar-se e tornarem-se difíceis de remover da carcaça (Northcutt, 2001).
O processo de escaldagem pode ser feito por imersão em água quente ou por aspersão, mas no futuro se poderá usar energia de microondas para realizar o processo, com possível eliminação da contaminação cruzada entre carcaças e uma substancial economia no consumo de energia (Parry, 1989 citando Miller et al.,1982).
A escaldagem por aspersão, ainda que menos usada que a por imersão, tem como beneficio uma melhor higiene das carcaças e como desvantagens o alto consumo de água e o relato da maior incidência de defeitos nas carcaças (Parry et al., 1989). Esta maior incidência de defeitos na carcaça pode ser devida à menor eficiência na transferência de calor aos folículos proporcionada por este sistema, o que exige, como compensação, uma temperatura mais alta da água, levando à fragilização da pele com aumento da suscetibilidade aos danos. Esta conclusão está embasada por estudos que submeteram carcaças à escaldagem por imersão, a 52° e 56,5 °C por 2 minutos, e por aspersão, a 60, 65 e 70° C por 1 minuto, enquanto monitoravam as temperaturas de pontos específicos destas carcaças por meio de termopares neles inseridos - na parte superior de ambas as metades do peito; no ponto médio de ambas as sobrecoxas; sob ambas as asas; sob a sambiquira e entre as asas. Depois de submetidas aos tratamentos indicados, observou-se que: (a) as temperaturas lidas nas carcaças escaldadas por aspersão foram as que apresentaram a maior divergência com relação aos diferentes pontos de leitura, (b) as maiores temperaturas foram alcançadas durante os tratamentos com aspersão e (c) o único tratamento por aspersão cujas temperaturas amostradas mais se aproximaram daquelas do tratamento por imersão foi o de 70°C. Ainda, todas as carcaças escaldadas por aspersão durante 60 segundos apresentaram a pele com aparência de cozida. Contudo, quando o tempo de aspersão foi reduzido para 30 segundos a aparência da pele melhorou e, à exceção do experimento a 70°C, a depenagem ficou prejudicada (Dickens et. al, 1999).
A escaldagem por imersão é feita em tanque. O tanque de escaldagem não é um equipamento cujas especificações são universais, mas, ao contrário, são estabelecidas de acordo com as exigências especificas de cada processo, trabalho que deve levar em consideração o tamanho das carcaças, a cor de pele desejada, a apresentação do filé de peito, a velocidade de abate, o tempo de imersão, a temperatura da água e o tamanho das aves. O conjunto destas variáveis vai determinar o comprimento, profundidade e largura do equipamento de modo a assegurar o completo encobrimento das carcaças pela água durante o processo. Levar em conta no projeto os aspectos termodinâmicos do processo é também muito importante, uma vez que é possível economizar uma considerável quantidade de energia com um desenho e concepção cuidadosos (Parry, 1989 citando Schipper, 1981). Contudo, não se faz um bom produto apenas com um tanque cheio de água. É necessário agitar e aquecer a água!
A agitação da água do tanque de escaldagem tem a função de eriçar a camada de penas que reveste a pele das aves, permitindo que o calor da água seja transferido de maneira eficaz, rápida e econômica aos folículos, facilitando a remoção das penas, posteriormente.
A agitação da água pode ser feita por meio mecânico ou por injeção de ar. A agitação mecânica é um sistema de tecnologia obsoleta, mas ainda em uso em muitas empresas. Ela se caracteriza pelos agitadores, conjuntos compostos por motor elétrico, eixo e hélice, dispostos longitudinalmente ao longo do tanque, e que fazem cair sobre as carcaças em movimento uma cascata de água quente. Este sistema tem um alto consumo de energia, exige manutenção freqüente e é de baixa eficácia, pois a cascata que produz tem uma força de penetração limitada à uma dada profundidade e, com isto, o eriçamento das penas de certas partes da carcaça acaba ficando comprometido.
O sistema de injeção de ar, que equipa os tanques de geração mais recente, é de construção mais simples e de resultado mais eficaz. Consiste de um soprador, cuja saída está conectada, por mangueira, aos bicos injetores instalados, longitudinalmente, no fundo do tanque. Acionado por um só motor elétrico, este sistema tem um baixo consumo de energia, e, pelo reduzido número de peças que o compõe, exige uma manutenção simples. Sua capacidade de agitação das penas é bem superior à do sistema mecânico e, com isto, proporciona uma troca térmica do meio com os folículos mais eficaz, beneficiando a depenagem.
O aquecimento da água joga um papel fundamental na eficácia do processo, pois é a quantidade de calor transferida da água aos folículos que responderá pela maior ou menor facilidade na remoção da penas durante a depenagem, posteriormente. O processo de escaldagem pode ser brando, com a água aquecida ao redor de 55°C para a produção de carcaças de pele amarela, ou duro, aquecida acima dos 55°C para produção de carcaças de pele branca. O processo de aquecimento da água não e estático, mas dinâmico, pois estão entrando no tanque, simultaneamente, as carcaças, a água de reposição e o vapor, elementos cujas temperaturas e características térmicas são absolutamente distintas umas das outras, mas que precisam ser harmonizadas com a finalidade de dar ao sistema a condição termodinâmica adequada à proposta do processo. O aquecimento da água pode ser feito de diferentes maneiras.
O aquecimento direto, opção mais comumente utilizada, consiste de injetar o vapor na água por meio de difusores instalados na parte inferior do tanque, fazendo-a aquecer-se. O sistema de agitação se encarrega de distribuir esta massa térmica que se forma ao redor dos difusores, homogeneizando a temperatura dentro do tanque. Este sistema requer baixo investimento pela sua simplicidade, e permite subir ou baixar, rapidamente, a temperatura do meio, mas produz uma distribuição heterogênea da temperatura dentro do tanque.
O aquecimento indireto consiste de fazer passar dentro do tanque uma serpentina que é aquecida pela circulação de vapor ou fluido térmico, e que assim aquece, por convecção, a água que a circunda. O aquecimento indireto requer, além do tanque, uma serpentina, por isto é mais caro. A sua concepção, no caso de aquecimento com vapor, é simples, mas se torna mais complexa e ainda mais cara, no caso de aquecimento com fluído térmico que, além da serpentina, exige, em separado, uma unidade de aquecimento e os recursos para circulação do fluído. Em países onde o gás natural é suado como combustível, há sistemas de escaldagem indireto em que o vapor ou o fluído térmico são substituídos por um queimador acoplado ao tanque. Pela combustão do gás, se aquece um tubo colocado longitudinalmente dentro do tanque que, por convecção, aquece a água. Este sistema tem um custo operacional baixo graças ao preço competitivo do gás natural quando comparado a outros combustíveis nestes países. Contudo, sua eficiência térmica é também muito baixa, pois aquece de maneira desuniforme a água e, como conseqüência, gera uma distribuição heterogênea da temperatura dentro do tanque, tornando, por isto, quase impossível operá-lo a contento.
O uso de água pré-aquecida para alimentar o tanque é outra modalidade disponível. Consiste de aquecer a água, por modo direto ou indireto, em uma unidade à parte e bombeá-la para o tanque de escaldagem já à temperatura requerida pelo processo. É um sistema caro, por exigir duas unidades independentes - o tanque e o aquecedor - mas, como vantagens, permite subir e baixar a temperatura da água rapidamente e assegurar uma temperatura homogênea dentro do tanque.
O componente energético do processo de escaldagem não é importante somente sob a ótica operacional e de qualidade de carcaça, mas, igualmente, sob a da conservação de energia, uma preocupação rara de se ver na industria avícola, apesar das oportunidades interessantes para reduzir o consumo de vapor e de combustível existentes. Usando um trocador de calor, por exemplo, é possível pré-aquecer a água de alimentação do tanque por meio da retirada de calor de fontes, tais como, a água de escoamento da própria escaldagem; os gases de exaustão ou o condensado provenientes da unidade de subprodutos; a água de resfriamento e lavagem de gases e outros. No tanque perde-se calor por convecção, radiação e evaporação. Apesar das perdas por radiação serem desprezíveis e dos ganhos advindos do isolamento do tanque não justificarem o investimento, ações como a instalação de uma cobertura e de tampas laterais para reduzir as perdas por evaporação podem produzir resultados expressivos (Parry et. al., 1989). Não só o vapor, mas também a água apresenta potenciais de economia inexplorados. Há relatos de empresas exitosas em seu esforço de reciclagem, que recolhem a água de lavagem oriunda de equipamentos, lavadores internos e externos e cabines de lavagem e, depois de submetê-la à filtração, ozonização e pré-aquecimento, alimentam com ela o tanque de escaldagem. Em uma delas, esta tecnologia gerou, além dos ganhos energéticos, um enorme impacto sobre a prevalência de Salmonella no produto final (Russell, 2001).
Os tanques de escaldagem possuem as mais diversas configurações no que diz respeito ao número de passos e de estágios, e não existe uma que seja unanimemente a melhor, pois, para tal, sua concepção precisaria incorporar critérios os mais diferentes, em função de empresa, mercado ou país, algo tecnicamente inviável.
O tanque de dois passos (ida e volta) é o mais comumente utilizado. Esta configuração, que é bastante simples, possui como vantagens a completa visualização do processo de escaldagem; o fácil e rápido acesso às carcaças, recurso-chave em caso de falha operacional, pois reduz a queima de carcaças; a acessibilidade ao seu interior para manutenção e a facilidade e praticidade para a higienização. Contudo, em função dos parâmetros do processo, podem ser muito longos, às vezes. O sistema de três ou mais passos, ainda que não comuns, são freqüentes e seu traçado pode ser algo simples ou apresentar uma configuração, não raras vezes, bastante complicada. O sistema de três ou mais passos tende a ser mais compacto e menos longilíneo que o de dois passos e é adotado, algumas vezes, para adaptar o tanque ao layout preexistente no abatedouro. Contudo, operacionalmente tem algumas desvantagens: impede a visualização completa do processo; o acesso à parte central é praticamente impossível, o que faz aumentar as perdas por queimadura de carcaça em caso de falhas operacionais; a acessibilidade para manutenção é dificultada pela estrutura interna além de ser pouco prático de higienizar.
Os abatedouros são um terreno fértil para o crescimento de microorganismos. Considerando-se que uma bactéria pode multiplicar-se em milhões, num transcurso de poucas horas desde que encontre um ambiente favorável - água, temperatura e nutrientes - a preocupação com a higiene deve ser primordial por isto é importante a adoção de medidas preventivas para evitar a contaminação cruzada. Para minimizar a dispersão de microorganismos e proteger a segurança dos produtos finais, os abatedouros são encorajados a adotar as Boas Práticas de Manufatura e continuamente educar os trabalhadores dos perigos da contaminação cruzada e como as atividades rotineiras de um abatedouro podem contribuir para prevenir sua ocorrência.
A escaldagem é um dos principais pontos de ocorrência de contaminação cruzada por salmonella dentro do abatedouro (Russell, 2001 citando Okrend et al., 1986). Por esta razão é que, ainda em meados dos anos 80, começou-se a analisar, na Europa, as vantagens do uso de tanques com mais de um estágio no tocante à diminuição da concentração de contaminantes físicos e, sobretudo, microbiológicos existentes nos tanques de um só estágio buscando, com isto, reduzir a contaminação cruzada durante o processo (James et al., 1992, Mulder et al., 1977, Nothermans et al., 1975).
Inicialmente construídos em estágios estanques, eles evoluíram para o sistema em contra-corrente, buscando potencializar o efeito qualitativo promovido pelos múltiplos estágios (Russell, 2001, Cason et al., 2000). O movimento contrário da água é fundamental para lavar as carcaças e remover a contaminação presente nelas enquanto transitam pelo tanque, pois as bactérias removidas da superfície externa das que entram no tanque não são transferidas para a superfície das que estão deixando o tanque. Este mecanismo contribui, comprovadamente, para a diminuição da carga bacteriana das carcaças após a escaldagem (James et al.1992).
Conjuntamente à concepção física, também a água do tanque desempenha um papel importante. Para tanto, a sua temperatura deve ser mantida o mais alto possível, de modo a eliminar parte da carga bacteriana presente sem, todavia, causar danos visíveis às carcaças, tais como queimaduras no peito, por exemplo, e a taxa de renovação deve ser alta, como forma de diluir os níveis de matéria estranha, excremento e bactérias presentes no tanque (Russell, 2001). Estes cuidados são importantes, pois o papel de barreira microbiológica exercido pela água parece ter seu êxito dependente de características tais como a temperatura, presença de matéria orgânica e pH.
Estudos mostram que a morte das bactérias aderidas à pele das carcaças pelo calor da água tem propensão a ocorrer somente em temperaturas superiores a 51° C enquanto para Salmonella este limite parece estar acima dos 55 °C (Notermans, 1975). Em água à 50°C e com a elevação do pH num meio tamponado entre 6 e 9, aumentou-se a sensibilidade térmica do Campylobacter jejuni, um efeito anulado, contudo, pela presença intencional de 1% de matéria orgânica no meio. Por outro lado, quer na presença ou ausência de matéria orgânica, uma taxa de mortalidade mais alta foi observada para a água na temperatura de 60°C, um efeito que foi novamente potencializado quando se aumentou o pH do meio para 9 (Hudson et al., 1987), comportamento que comprova os efeitos da temperatura sobre a carga bacteriana das carcaças. Não apenas para Campylobacter, mas também para Salmonella, a mudança do pH do meio de 6.0, observado na condição usual de escaldagem na maior parte do dia, para 9.0 +/- 0.2, mostrou contagens significativamente mais baixas nas carcaças após a escaldagem e depenagem. Estas observações foram reconfirmadas em laboratório, onde Salmonella typhimurium e microorganismos da flora natural da pele das carcaças morreram muito mais rapidamente em água com pH de 9.0 +/- 0.2 (Humphrey et al, 1984). Contudo, não apenas o meio parece contribuir para afetar a taxa de mortalidade dos microorganismos, mas a própria constituição das carcaças. O relevo da pele oferece aos microorganismos meios para sua ancoragem mecânica que parecem ser mais significativos que o proporcionado pelos biopolímeros, uma vez que bactérias que sobreviveram ao processo de escaldagem foram difíceis de serem removidas das carcaças ao longo de etapas posteriores do processo (Notermans et al., 1975).
O processo de escaldagem, como vimos, encampa um conjunto significativo de operações que respondem por questões tão distintas umas das outras quanto importantes no conjunto de seu resultado. Apesar de orientadas pelo mesmo princípio físico, os processo caseiro e industrial em nada mais se assemelham. Afinal processar aves não é uma atividade primitiva que responde pelo abate de animais. Processar aves é uma atividade industrial e econômica, guiada por exigências legais e técnicas, contexto em que o domínio do processo e suas variáveis e o uso da informação e da tecnologia podem significar a diferença entre o sucesso e o fracasso de uma operação.
Fig. 1 - O fechamento do tanque ajuda na conservação da energia usada no processo (Foto em Russell, 2001)
Fig. 2 - A renovação da água no tanque é importante para diluir a concentração de contaminantes físicos e microbiológicos (Foto em Russell, 2001)
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