Consumo de carne suína no Brasil: indicadores, evolução e diferenças regionais
Marcelo Miele
Há um conjunto de variáveis que são essenciais para acompanhar o desempenho de uma cadeia produtiva, sendo as principais: consumo, produção, participação no comércio internacional, preços e custos. Dentre estas, acredita-se que o consumo seja aquela com a maior carência de estatísticas no Brasil.
Recentemente, vários atores da cadeia produtiva têm expressado a necessidade de medir o consumo de carne suína e de produtos processados no Brasil. Destaque para a Associação Brasileira dos Criadores de Suínos (ABCS) e as associações estaduais de suinocultores que estão envolvidos em uma política de marketing denominada “Um novo olhar sobre a carne suína”. É natural que produtores, empresas, instituições e governos que investem na promoção de um dado produto desejem caracterizar o seu consumo, bem como monitorar a sua evolução ao longo do tempo, permitindo assim avaliar a eficácia da ação de marketing.
O objetivo deste texto é apresentar uma análise das estatísticas e estimativas disponíveis, bem como apontar para uma agenda para dimensionar e acompanhar a evolução do mercado consumidor. Esta iniciativa se insere na proposta de uma central de informações para a suinocultura.
A Disponibilidade Interna (DI)
A informação mais difundida é a da disponibilidade interna (DI) que é a diferença entre a produção e o saldo do comércio exterior (exportações – importações, que no caso da carne suína são pouco expressivas). A DI não representa o consumo de carne suína e de produtos processados, mas o volume produzido de carne suína em equivalente carcaça que não foi absorvido pelo mercado externo. É uma medida de fácil acompanhamento, até mesmo em análises conjunturais (mensais ou trimestrais). Como pontos negativos, ressalta-se que é uma conta de chegada; que geralmente não considera a variação nos estoques (esta informação é restrita às empresas); e que dificilmente pode ser estimada para o nível estadual pela falta de dados sobre o trânsito interestadual de animais, exportações e produtos acabados. Por fim, deve-se ressaltar que há divergências entre as estatísticas oficiais e as estimativas setoriais.
A Figura 1 a seguir apresenta a evolução da produção e das exportações no Brasil a partir de duas fontes disponíveis. A Pesquisa Trimestral do Abate de Animais (PTAA) do IBGE mede os abates sob inspeção federal, estadual e municipal a partir de questionários junto a uma amostra representativa de estabelecimentos, com dados desagregados para o nível da unidade da federação. O Levantamento Sistemático da Produção de Suínos (LSPS) estima a oferta de animais para abate a partir do alojamento de matrizes, da sua produtividade e do peso médio de abate. A oferta de animais do rebanho industrial baseia-se em informações das agroindústrias integradoras e das associações estaduais de suinocultores. A oferta de animais para subsistência e autoconsumo baseia-se em avaliações qualitativas. O LSPS utiliza a técnica de painel nos oito principais estados produtores. Os dados de exportações utilizados são aqueles disponibilizados pela Abipecs.
Figura 1. Produção e exportação de carne suína no Brasil (mil t)
Fonte: PTAA/IBGE; LSPS; Abipecs.
A partir das fontes consultadas, conclui-se que a oferta brasileira cresceu a partir dos abates inspecionados e do alojamento de matrizes do rebanho industrial em detrimento da produção de subsistência para consumo próprio; e que as exportações mantiveram-se no mesmo patamar no período, perdendo importância em relação ao mercado interno na absorção da produção.
Na Figura 2 apresenta-se a DI per capita calculada a partir das duas fontes utilizadas acima e das estimativas populacionais do IBGE. Conclui-se que:
a escolha da fonte de informação leva a resultados diferentes;
as estimativas totais do LSPS, que incluem a produção de subsistência, apontam para uma certa estabilidade da DI per capita, oscilando entre 11 e 14 kg, sendo que o patamar de 2002 é o mesmo de 2010;
as estimativas a partir do rebanho industrial do LSPS e das estatísticas oficiais de abate do IBGE apontam para uma tendência de aumento da DI per capita, de 8 a 10 kg em 2002 para 13 kg em 2010;
essas diferenças podem significar uma redução da produção própria para autoconsumo e aumento do consumo da produção sob inspeção.
Figura 2. Disponibilidade Interna per capita (kg/habitante/ano)
Fonte: IBGE/PTAA; LSPS; IBGE/DPE
A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF)
Segundo o IBGE, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) “visa principalmente mensurar as estruturas de consumo, dos gastos, dos rendimentos e parte da variação patrimonial das famílias”. A investigação dos hábitos de consumo alimentar é detalhada para 17 grupos e 50 subgrupos de produtos, nos anos de 1987, 1996, 2002 e 2008. O presente estudo fez uma comparação entre os resultados das duas últimas pesquisas, sendo que a mais recente entrevistou uma amostra de 59.548 domicílios. A variável de aquisição alimentar domiciliar per capita (AD), ao contrário da DI per capita, não é uma conta de chegada, e baseia-se na declaração dos informantes. Como pontos negativos, ressalta-se que é uma pesquisa extensa e custosa que não pode ser realizada todos os anos; e que não mede o consumo fora do domicílio, apenas o montante das despesas (sem considerar o produto).
Ocorreu no período de 2002 a 2008 uma pequena queda na aquisição domiciliar per capita das carnes, puxada pela queda nos pescados, na carne suína e de aves. Por outro lado, as carnes bovina e de outros animais cresceram. Mesmo assim, pode-se afirmar que ocorreu uma certa estabilidade entre as diferentes carnes (Tabela 1). Entre as grandes regiões, a carne suína (in natura e processados) tem maior participação nas regiões produtoras (Sul, Sudeste e em menor medida no Centro-Oeste). Nas regiões Nordeste e Norte a carne suína tem participação inferior aos pescados.
Os dados sobre o consumo de carne suína devem ser analisados em mais detalhe para se compreender a tendência verificada (Tabela 2). A queda na aquisição domiciliar per capita ocorreu nas carnes in natura, na banha e nas vísceras, que perderam participação entre os produtos da suinocultura. O único corte de carne in natura cujo consumo aumentou foi o carré. Além disso, chama à atenção a queda no consumo de lombo (o que pode estar associado a problemas da pesquisa). Com os produtos processados e a linguiça ocorreu o contrário, com um crescimento na aquisição domiciliar per capita em quase todos os itens (exceto salame, toucinho fresco e paio). Conclui-se a partir dos dados da POF para o consumo domiciliar, que ocorreu entre 2002 e 2008 uma substituição das carnes in natura pelos produtos processados e uma queda acentuada nos produtos de menor valor agregado como banha e vísceras.
Fonte: IBGE/POF
Em termos regionais, a participação da carne suína in natura é mais expressiva no Sul e Centro-Oeste. De maneira geral, o crescimento da aquisição domiciliar nas regiões foi bastante semelhante ao padrão nacional, com queda da carne in natura e aumento dos processados (Figura 3).
Figura 3. Variação da aquisição domiciliar per capita por regiões, entre 2002 e 2008 (%)
Fonte: IBGE/POF
Outra questão que deve ser levada em conta nesta análise é a redução da produção própria para autoconsumo, que influenciou os resultados acima apresentados. Enquanto que entre os produtos processados a participação da produção própria é quase nula, na carne in natura ela é significativa, com destaque para as regiões Sul e Norte (Figura 4). Analisando os dados desagregados pela forma de aquisição (monetária x produção própria), percebe-se que a queda no consumo de carne in natura que vai para o mercado (aquisição monetária a vista ou a prazo) foi menor do que apontado na Tabela 2. Em todas as grandes regiões, exceto o Nordeste, ocorreu uma acentuada queda na produção própria de carne in natura entre 2002 e 2008, com destaque para a região Sul, que praticamente não diminuiu o consumo de carne in natura via aquisições monetárias (Figura 5).
Figura 4. Participação da produção própria na aquisição domiciliar per capita por regiões (%)
Fonte: IBGE/POF
Figura 5. Variação na aquisição domiciliar per capita de carne suína in natura, por forma de aquisição, entre 2002 e 2008 (%).
Fonte: IBGE/POF
Outra questão a ser considerada é a renda do consumidor. De maneira geral, tanto a carne in natura, quanto que os produtos processados têm sua aquisição domiciliar per capita elevada à medida que cresce a renda do consumidor. Mas isso deve ser analisado por produto. Aqueles com maior valor agregado como o presunto ou os cortes de carne in natura apresentam elevação da aquisição per capita à medida que cresce a renda (o mesmo ocorre com a carne bovina de primeira). Por outro lado, entre produtos processados como linguiça e mortadela, a aquisição per capita não sofre tanta influência da renda ou até mesmo se reduz a partir de faixas de renda intermediárias (o mesmo ocorre com a carne bovina de segunda e de aves). Desta forma, à medida que a renda se eleva, ocorre uma substituição dos produtos processados pela carne in natura (exceto para a última faixa de renda). Este padrão se verifica em todas as regiões, sendo que no Sudeste ele é menos acentuado (Figura 6).
Figura 6. Participação do tipo de produto na aquisição domiciliar per capita de carne suína, por faixas de renda, 2008 (%).
Fonte: IBGE/POF
Por fim, a POF aponta para a tendência de aumento das despesas com alimentação fora do domicílio, que passaram de 24% para 31% das despesas com alimentação, no período de 2002 a 2008 (Tabela 3). É de se esperar que esta tendência tenha tido impacto no consumo de carne suína. Como citado acima, a POF não mede a aquisição per capita fora do domicílio, não havendo estatísticas por tipo de produto. Somente a título de exercício, e assumindo a hipótese pouco realista de que o perfil de consumo seja o mesmo dentro e fora do domicílio, estima-se na Tabela 3 a aquisição per capita de carne suína fora do domicílio e total.
O segmento de alimentação fora do domicílio cresceu no período e é ainda mais importante, entre as faixas de renda mais elevadas. Enquanto que as famílias com até R$830 de renda realizaram apenas 17% da sua aquisição alimentar fora do domicílio, este percentual foi de 46% entre as famílias com mais de R$6.225 de renda.
Considerações finais
O presente estudo buscou caracterizar o consumo de carne suína no Brasil a partir das estatísticas oficiais e setoriais disponíveis. Tanto o conceito de disponibilidade interna, quanto que as pesquisas que estimam a aquisição domiciliar são úteis e apresentam pontos positivos e negativos.
No âmbito da campanha de promoção da carne suína, entende-se que utilizar apenas a DI não seja suficiente, porque esta medida não apresenta o detalhamento necessário para focar as ações de marketing e monitorar a sua eficácia. De toda forma, a meta apresentada de elevar a DI em 2 kg/hab./ano não deve ser descartada porque representa um elemento aglutinador de esforços em torno de um objetivo comum (elevar o consumo de carne suína), uma espécie de bandeira dos produtores.
A partir dos elementos colocados neste artigo, entende-se que dimensionar e acompanhar a evolução do mercado consumidor deva seguir os seguintes pontos:
Utilizar a POF de 2008 como cenário base;
Como a POF é realizada em intervalos de tempo muito espaçados e o tamanho da amostra torna a pesquisa custosa, deve-se consultar o IBGE da possibilidade de realizar uma parceria a fim de definir uma sub amostra que permita o acompanhamento anual do consumo de carne suína;
Realizar uma pesquisa junto às associações e instituições representativas de bares, restaurantes e lanchonetes;
Realizar uma pesquisa para caracterizar e acompanhar a aquisição per capita de carne suína na chamada cozinha industrial e institucional (creches, escolas, restaurantes universitários e presídios).