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Bem-estar animal - a ciência diz que sim

Publicado: 1 de janeiro de 1900
Por: Andrea Cristiane Quevedo - Editora Gessulli Agribusiness
O assunto é instigante e complexo. O tratamento dos animais destinados para o abate está sobressaindo-se entre as novas tendências de produção e consumo da carne. "Já não é possível desvincular a imagem do bem-estar animal com a do bem-estar humano", afirma Luiz Carlos Pinheiro Machado Filho, professor responsável pelo departamento de Zootecnia e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Segundo ele, a ausência de bem-estar aos animais criados para a produção de carne pode resultar em um produto de qualidade inferior e de baixo valor comercial. "No caso dos suínos pode haver uma maior incidência de carne com PSE (pálida, mole e exsudativa), DFD (escura, dura e seca) e com menor tempo de vida de prateleira". Os suínos produzidos sem as mínimas condições de bem-estar, podem apresentar desde hematomas, ossos danificados, mudanças de comportamento até quadros mais crônicos de estresse. O bem-estar animal abrange itens como ambiência, manejo, nutrição, entre outros.

O médico veterinário e PhD em bem-estar animal, Adroaldo Zanella, concorda com o colega da UFSC. Acrescenta ainda que porcas mantidas em celas de gestação desenvolvem formas anormais de comportamento, "que podem refletir em mudanças irreversíveis no cérebro". Da mesma forma, porcas estressadas apresentam respostas imunitárias (reação dos anticorpos) comprometidas e produzem colostro pobre em imunoglobulinas (que protegem o leitão contra doenças). Outro ponto negativo que Zanella ressalta é o uso do choque elétrico no manejo dos suínos. "Está mais do que comprovado que o choque elétrico causa mudanças comportamentais e fisiológicas nos animais, como aumento da temperatura corporal e da frequência cardíaca".

Embora as regras do comércio internacional, hoje, não prevejam restrições em razão de motivações de ordem do bem-estar animal, pode haver no futuro pressão de grupos pró bem-estar para influenciar negativamente a imagem de estabelecimentos comerciais que vendem carne importada de regiões onde os suínos são criados em condições tidas como desumanas. Na Inglaterra, cerca de 30% do rebanho suíno se enquadra dentro das condições favoráveis de bem-estar animal. A criação desses animais a campo, até a terminação, sem mutilações (corte de cauda) e livres de hormônios e antibióticos, reflete a imagem de suínos saudáveis e "felizes", que os consumidores estão aprendendo a associar aos alimentos que consomem.

Alternativas - De acordo com dados arqueológicos publicados pela revista americana Science em novembro de 1998, e mencionados por Zanella, o suíno foi o primeiro animal a ser domesticado pelo homem, depois dos cães. Estudos realizados na Turquia comprovam que os suínos domesticados e os seres humanos dividem o mesmo ecossistema há mais de 11.500 anos. Não é falso dizer que o suíno é, pelo menos, "o segundo melhor amigo do homem".

Na visão do professor Machado Filho, existem duas grandes vertentes de conduta para melhorar o bem-estar animal, especialmente na suinocultura. Uma delas é o chamado "enriquecimento ambiental", que consiste em introduzir melhorias no próprio confinamento, com o objetivo de tornar o ambiente mais adequado às necessidades comportamentais dos animais. "Neste caso, pode-se colocar objetos, como correntes e ‘brinquedos’, para quebrar a monotonia do ambiente físico", comenta. A presença desses objetos no recinto do animal pode reduzir a incidência de canibalismo. A colocação de palha no piso, sobre o cimento, também apresenta o mesmo resultado. De acordo com o professor, essas medidas reduzem a agressão e os animais separam a área de excreção (próximo ao bebedouro) da área de descanso.

Colocar barreiras na estrutura física da instalação também é importante. Estudos realizados pela equipe de Adroaldo Zanella, em Cambrige (Reino Unido), publicados em 1992, comprovam a teoria. De acordo com ele, porcas mantidas em grupos formam uma estrutura social complexa. Nessa estrutura, certos animais mantêm-se como "dominantes", outros evitam a confrontação social, e outros assumem uma posição incerta no grupo. "Medidas de produtividade e estresse entre os dominantes e os animais que evitam confrontação social não são percebidas", explica o especialista. "No entanto, animais de posição incerta dentro do grupo apresentam índices reprodutivos comprometidos e níveis de hormônios de estresse elevados". No conceito de enriquecimento ambiental também entra a utilização de gaiolas parideiras para as porcas, com espaço suficiente para a matriz poder virar-se. Essas gaiolas também devem ter o piso coberto com palha para que elas possam fazer o ninho. No momento, esse tipo de alojamento para o parto e a lactação dos leitões, vem sendo pesquisado por várias instituições européias. "A mortalidade de leitões nos sitemas sem uso de celas parideiras é elevado e o seu bem-estar, comprometido".

A outra vertente, apontada pelo especialista, seria repensar o sistema criatório como um todo, ou propor sistemas criatórios alternativos. "A melhor alternativa que conheço é o sistema de criação de suínos ao ar livre", diz Machado Filho. A introdução desse sistema no Brasil foi realizada há mais de 15 anos, na propriedade de Ipenor Zanella e Nair Zuleika Zandoná Zanella, no município de Paim Filho (RS). A unidade operou com um efetivo de 60 a 80 matrizes da raça Duroc até o início de 1999. Vários conceitos desenvolvidos na propriedade foram incorporados ao sistema de produção "orgânica" (sustentável), "que é bem mais avançado do que o sistema convencional ao ar livre e vem sendo bastante discutido na Europa", diz Adroaldo Zanella.

Em 1987, o Sistema Intensivo de Suínos Criados ao Ar Livre (Siscal), como é conhecido no País, foi introduzido em Santa Catarina pelo agrônomo João Augusto Vieira de Oliveira, com apoio técnico da Embrapa. As características do sistema estão moldadas à criação dos suínos a céu aberto e com abrigo em cabanas. Variações como o tamanho do piquete, número de porcas por cabana, tipos de comedouro, etc., são percebidas de região para região. "O Siscal apresenta muito menos problemas comportamentais", conta Machado Filho. Pesquisas realizadas na UFSC em 1988, confirmaram que comportamentos anômalos, canibalismo e agressão, foram bem menores entre os suínos criados ao ar livre do que entre os criados no sistema de confinamento convencional. Segundo o especialista, o Siscal também tem implicações positivas no ambiente, na saúde animal e no balanço energético da criação. "Implica em investimentos muito menores (mesmo considerando a terra) e tem como resultado a produção de um animal ‘orgânico’, com alto valor de mercado".

Outro sistema alternativo para a criação de suínos é conhecido como Pig Family Housing, (Stolba, 1982). Desenvolvido com base nos padrões comportamentais de suínos em condições ferais ou a campo extensivamente, é um sistema onde quatro porcas e um cachaço dividem um mesmo espaço, como se fossem moradores de um "condomínio". Cada porca fica alojada em um "apartamento". Os apartamentos comunicam-se entre si e o cachaço circula livremente entre eles. Os leitões convivem desde cedo com o grupo, o que evita os problemas de agressão quando são desmamados e reagrupados em lotes de recria. Nos espaços de cada animal, há uma área separada para excreção, coberta com barro, sendo o restante do piso coberto com palha. O Pig Family Housing também é promotor do bem-estar animal, embora seja um confinamento e implique em investimento inicial mais alto que o confinamento intensivo.

Mão-de-obra – Assim como as instalações, o manejo também tem grande influência sobre o bem-estar dos animais. A seleção e o treinamento da mão-obra responsável pelo cuidado dos suínos figuram como aspectos fundamentais para a manutenção do bem-estar na granja. "Um tratador consciente, bem treinado e sensível às necessidades dos suínos é a melhor garantia de que o bem-estar vai ser assegurado", afirma Adroaldo Zanella. Há 11 anos fora do Brasil, realizando estudos e pesquisas na área de bem-estar animal, o veterinário e professor assistente da Michigan State University (EUA) – universidade em que atua há cerca de três anos –, explica que um indivíduo com baixa auto-estima utiliza, com freqüência, estratégias agressivas para manejar suínos.

"Tal agressão demonstra ser extremamente prejudicial ao rendimento dos animais", diz. Zanella confidencia que seu entusiasmo pela área de bem-estar animal iniciou-se com o seu envolvimento na unidade de produção de suínos ao ar livre de seus pais, em Paim Filho. Ele é categórico quando fala sobre a preparação da mão-de-obra das granjas suinícolas que adotam o sistema de criação ao ar livre. As características desse sistema podem, em princípio, favorecer o bem-estar dos animais. Por outro lado, unidades ao ar-livre conduzidas por mão-de-obra não treinada pode pôr em risco a produtividade e o bem-estar dos animais. "Todas as pessoas que atuam diretamente na granja (suinocultor, técnicos e veterinários) deveriam ser treinadas na área de comportamento e bem-estar animal". Outro grupo de estudo, o do pesquisador australiano Paul Hemsworth, também comprovou que suínos tratados de forma agressiva têm produtividade e desempenho reprodutivo reduzidos.

A médica veterinária Maria Nazaré Lisboa, uma das proprietárias da Consuitec Assessoria Técnica, de Campinas (SP), há vários anos ministra cursos de capacitação para funcionários de granjas suinícolas. Dentro desses treinamentos, o assunto interação homem-animal é abordado com ênfase. Discute-se bastante sobre a importância de o animal ser bem tratado. "O que nós passamos a essas pessoas é a necessidade de se gostar de trabalhar com os animais e, acima de tudo, ter muita paciência no manejo". Nazaré explica que animais bem tratados e com boas condições ambientais apresentam melhor resposta produtiva.

Como é lá fora – Depois que foi diagnosticada a presença de dioxina (substância altamente cancerígena) em boa parte da ração consumida pelos rebanhos animais da Bélgica, a preocupação com a qualidade e procedência dos alimentos cresceu muito entre os consumidores europeus. E, na visão desses consumidores exigentes, sistemas alternativos de criação significam produtos "confiáveis" e de qualidade. A sociedade européia tem demandado um número cada vez maior de regulamentações para melhorar a qualidade de vida dos suínos destinados ao abate. Os produtores, então, sentem-se obrigados a investir em instalações, equipamentos e palha (muito comum nos sistemas alternativos).

Há na Inglaterra e em toda União Européia uma lei que proíbe o desmame de suínos antes de três semanas. Os especialistas europeus alegam que os leitões precocemente desmamados (antes dos 21 dias) sofrem estresse crônico. "Isso acontece porque os níveis do hormônio cortisol, relacionado ao estresse animal, permanecem elevados em seu organismo por mais de três dias após o desmame", explica Zanella. Essa lei ainda pode ser alterada. O prazo mínimo de amamentação dos leitões na UE deverá estender-se para quatro semanas. Existem outras regulamentações naqueles países, como a exigência de que a porca gestante fique em grupos. "A obrigatoriedade geral na Inglaterra é a de manter os animais em grupo", conta.

Na contramão, encontra-se a indústria suína americana. Os Estados Unidos apresentam um grande potencial para abastecer o mercado internacional com carne barata. Porém, as tendências européias parecem falar mais alto. "O suíno americano ainda é pouco competitivo, relacionado às exigências mundiais de bem-estar", comenta Adroaldo Zanella. A suinocultura brasileira, no entanto, tem se demonstrado mais adequada a essas exigências. A divulgação do Siscal e a preocupação com o bem-estar dos animais ganham pontos na preferência internacional. "Talvez, a fórmula mágica para levar o suíno brasileiro até os supermercados europeus esteja na adoção de sistemas alternativos de criação".

Legislação – O Brasil conta com uma legislação clara e objetiva para defender os direitos dos animais e garantir um tratamento mais humanitário às criações. Mas nem sempre a lei é cumprida. E, muitas vezes, sequer é conhecida. Conforme o artigo 3º do Decreto Federal nº 24.645, de 10 de julho de 1934, são considerados maus tratos manter animais em lugares anti-higiênicos ou que lhes impeçam a respiração, o movimento ou o descanso, sem a presença de ar ou luz; abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem como deixar de ministrar-lhe tudo que humanitariamente lhe possa prover, inclusive assistência veterinária; não dar morte rápida, livre de sofrimento prolongado, a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo ou não; transportar animais em cestos, gaiolas ou veículos sem as proporções necessárias ao seu tamanho e número de cabeças, e sem que o meio de condução em que estão encerrados esteja protegido por uma rede metálica ou idêntica, que impeça a saída de qualquer membro animal; entre outros. Tais ações implicam em multa e em pena de prisão de dois a quinze dias, seja o infrator o proprietário ou não do animal.

No Estado de São Paulo existe uma lei explícita para o abate humanitário de animais destinados ao consumo. É a Lei nº 7.705, de 19 de fevereiro de 1992, complementada pelo decreto nº 39.972, em 1995. Nela encontram-se normatizadas as medidas cabíveis aos matadouros, matadouros-frigoríficos e abatedouros do Estado. O artigo 1o prega "que é obrigatório o emprego de métodos científicos modernos de insensibilização aplicados antes da sangria, por processameto químico (gás CO2), choque elétrico (eletronarcose), ou ainda, por outros métodos modernos que impeçam o abate cruel de qualquer tipo de animal destinado ao consumo. Parágrafo primeiro – É vedado o uso de marreta e da picada do bulbo (choupa), bem como ferir ou mutilar os animais antes da insenbilização". E as normas vão além. O artigo 5º, por exemplo, diz que "o corredor de abate será adequado à espécie do animal a que se destina, visando facilitar seu deslocamento sem provocar ferimentos ou contusões. Parágrafo único – O animal que cair no corredor de abate será insensibilizado no local aonde tombou antes de ser arrastado para o boxe. Artigo 6º - Os animais, quando estiverem aguardando o abate, não poderão ser alvo de maus tratos, provocações ou outras formas de falsa diversão pública, ou ainda, sujeitos a qualquer condição que provoque estresse ou sofrimento físico e psíquico".

Tabela 1 - Confira na tabela abaixo as principais preocupações de adolescentes australianos sobre comer carne
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Tendência Orgânica

O mercado para produtos de animais criados em condições "humanas" (ou seja, num processo produtivo mais sustentável ecológica e energeticamente, como o é a suinocultura intensiva ao ar livre) é crescente. É um filão de mercado com enorme potencial e engloba exatamente aquela faixa de consumidores de maior poder aquisitivo. Mas não só é genuína a preocupação com o bem-estar dos animais, desde o seu nascimento até o seu abate, como se faz presente em todos os setores da sociedade.

De acordo com o pesquisador Luiz Carlos Pinheiro Machado Filho, da Universidade Federal de Santa Catarina, os produtores brasileiros podem esperar uma demanda crescente por produtos "orgânicos". Para a suinocultura isso significa carne de animais criados a campo, livres de antibióticos na ração, sem mutilações, saudáveis e "felizes". "Esta é a imagem que, crescentemente, os consumidores vêm associando aos alimentos que consomem".

O bem-estar dos animais está localizado no centro do mapa moral dos homens. E isso não vai retroceder. Embora o movimento seja hoje liderado por uma parcela minoritária da população, as demandas do público, cada vez mais urbano, serão crescentes.

Machado Filho descreve três atitudes possíveis, por parte dos produtores, técnicos e indústria, para com estas demandas. "A primeira é ignorá-las. Se entendemos que não vai haver retrocesso nas preocupações de ordem moral e ética do público, esta atitude é contraproducente e pode resultar em perda de fatias do mercado."

A segunda é contrapor-se às pressões do público, fazendo campanhas publicitárias, e utilizando a mídia. O resultado é imprevisível, além de caro. "É difícil defender a idéia de que o sofrimento animal é justificável em alguma circunstância. Ainda mais quando há, concretamente, alternativas", exclarece Machado.

A terceira alternativa, segundo Machado, é promover o entendimento e a cooperação, o que pode resultar em avanços no bem-estar animal e o atendimento das demandas do público. "Penso que esse seja o caminho mais adequado".

Publicado em Revista Suinocultura Industrial - Número 141 - Out/Nov/1999 - Gessulli Agribusiness
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