Introdução
O leite se constitui num alimento muito rico ao ser avaliado nutricionalmente, composto por 87,3% de água e 12,7% de sólidos totais, distribuídos da seguinte forma: proteínas totais, 3,3 a 3,5%; gordura, 3,5 a 3,8%; lactose, 4,9%; minerais, 0,7% em média, além de vitaminas. Por ser altamente nutritivo, o leite pode se tornar um excelente meio de cultura para microrganismos deteriorantes e patogênicos (SGARBIERI, 2005).
O leite UAT (ultra-alta temperatura) ou UHT (ultra hight temperature) é o leite homogeneizado, submetido durante 2 a 4 segundos a uma temperatura de 130ºC, mediante processo térmico de fluxo continuo, imediatamente resfriado a uma temperatura inferior a 32ºC e envasado sob condições assépticas em embalagens estéreis e hermeticamente fechadas (BRASIL, 1996).
O Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade (RTIQ) para leite UAT (UHT) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil (BRASIL, 1996) estabelece o mínimo de 3% de gordura para o leite integral, acidez titulável entre 0,14 e 0,18% de ácido lático, estabilidade ao etanol 68% e, no mínimo, 8,2% de extrato seco desengordurado (ESD). Após a incubação da embalagem fechada por 7 dias a 35-37 ºC, nenhuma amostra deve apresentar-se com contagem de aeróbios mesófilos superior a 102 UFC/mL em um lote de 5 amostras.
A qualidade do leite cru tem efeito direto na qualidade e vida útil do leite UHT (GILLIS et al., 1985). No Brasil, o leite cru tem se mostrado frequentemente em desacordo com os padrões microbiológicos (NERO et al., 2005; PINTO; MARTINS; VANETTI, 2006; ARCURI et al., 2006) e físico-químicos brasileiros (LORENZETTI et al., 2006; MENDONÇA, 2001; MARTINS et al., 2008).
Estudos sobre a qualidade do leite UHT indicam que alguns esporos podem sobreviver ao tratamento térmico apesar do processo destruir todas as células bacterianas vegetativas (ROSENTHAL, 1991). Sendo assim, o leite UHT nem sempre é um produto livre de contaminações, podendo, portanto, sofrer deterioração. A baixa qualidade microbiológica do leite, além de ser um problema de saúde pública altera tanto as características sensoriais quanto a vida útil dos produtos lácteos (FRANCO; LANDGRAF, 1996).
O leite UHT tem uma participação elevada na comercialização de leites fluídos no Brasil devido, principalmente, a sua praticidade e vida de prateleira. Segundo dados da Associação Brasileira de Leite Longa Vida (ABLV, 2009), a participação de mercado do produto que era de 9,6% em 1992, alcançou 74,8% em 2008.
A expansão do leite UHT no mercado brasileiro pode ser explicada pela sua vida útil prolongada, o que viabiliza sua logística, assim como por não exigir refrigeração, sendo mais cômodo para o consumidor (SANTOS; MARTINS; TEIXEIRA; 1999).
No entanto, no Brasil, apesar da crescente importância desse produto no mercado, poucos são os trabalhos relacionados à qualidade do leite UHT. O presente trabalho teve como objetivo avaliar a qualidade microbiológica e físico-química de marcas de leites UHT produzidas no Estado do Paraná, Brasil.
Material e Métodos
Foram avaliadas 150 amostras de três marcas de leite UHT integral identificadas como X, Y e Z, produzidas em fábricas de laticínios localizadas no Estado do Paraná, entre outubro de 2004 e fevereiro de 2005. De cada marca foram coletadas 50 amostras divididas em cinco lotes, portanto dez amostras por lote; destas, cinco foram incubadas a 35-37 ºC por 7 dias e cinco analisadas no dia da coleta.
As análises microbiológicas foram realizadas conforme recomendado pelo Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade (RTIQ) do leite UHT, estabelecido pela Portaria 146 do Ministério da Agricultura e Pecuária (BRASIL, 1996).
A contagem de mesófilos aeróbios foi realizada por semeadura em ágar padrão para contagem, seguida de incubação a 36ºC por 48h, segundo a Instrução Normativa 62 (BRASIL, 2003) e os resultados expressos em UFC/mL. A partir das contagens obtidas, para triagem, três colônias de microrganismos aeróbios mesófilos isolados em cada amostra foram selecionadas e submetidas a provas tintoriais pelo método de Gram, para classificação dos microrganismos através da morfologia e coloração.
As análises físico-químicas (densidade, acidez titulável, teor de gordura, índice crioscópico, estabilidade ao etanol 68%, teores de extrato seco total e desengordurado) foram realizadas segundo LANARA (BRASIL, 1981).
Todas as análises foram realizadas no Laboratório de Pesquisa em Microbiologia e Físico-Química de Alimentos da Universidade Federal do Paraná – Campus de Palotina. Os resultados obtidos foram avaliados comparando-se com os valores de referência descritos no RTIQ de leite UHT.
Resultados e Discussões
Das 150 amostras analisadas, 36 (24%) apresentaram contagem de mesófilos aeróbios acima do padrão estabelecido pela RTIQ para leite UHT (102 UFC/mL) (Tabela 1). Estes resultados foram inferiores aos encontrados por Coelho et al. (2001) em Belo Horizonte – MG, que detectaram 41,2% das 80 amostras de leite UHT com contagens de mesófilos aeróbios acima do limite estabelecido pelo RTIQ; e também inferiores aos resultados encontrados por Rezende et al. (2000) em Ribeirão Preto-SP, onde 53,3% das 120 amostras de leite UHT de quatro marcas comerciais comercializadas em Ribeirão Preto-SP apresentaram contaminação por microrganismos mesófilos.
Vidal-Martins et al. (2005) avaliaram 110 amostras de leite UHT de 11 marcas diferentes comercializadas em São José do Rio Preto-SP e encontraram 22,7% das amostras fora do padrão, com contagens de microrganismos heterotróficos mesófilos variando de <1,0 x 102 UFC/mL a ≥ 1,0 x 106 UFC/mL. Outro estudo feito com 100 amostras de leite UHT de diferentes regiões do Brasil revelou um total de 45% de amostras com contagens acima do limite tolerável pelo RTIQ oscilando entre 2,0 x 104 e 9,5 x 105 UFC/mL (ZACARCHENCO et al., 2000).
A presença de mesófilos aeróbios no leite UHT pode ser indicativa da má qualidade do leite cru, condições inadequadas de armazenamento e processamento ou contaminação pós-processamento (WESTHOFF, 1981).
A marca Z foi a que apresentou os piores resultados onde 62% das amostras apresentaram-se com contagens superiores ao limite regulamentar, seguido de X e Y, com 6% e 4%, respectivamente (Tabela 1).
T abela 1. Número de amostras com contagem de mesófilos (UFC/mL) acima do estabelecido pela Portaria 146 do Ministério da Agricultura (BRASIL, 1996) (limite máximo de 100 UFC/mL).
Quanto aos resultados observados na coloração de Gram, nas amostras analisadas da marca X, houve predominância de cocos Gram-positivos (66,7%), seguida por 27,8% de cocos Gram-negativos, 5,5% para bacilos Gram-negativos. Para a marca Y, também ocorreu predominância de cocos Gram-positivos (57,9% das amostras). Contudo, para a marca Z houve certo equilíbrio de isolamento entre cocos Gram-positivos, cocos Gram-negativos e bacilos Gram-negativos (Figura 1). Esta marca foi a que apresentou maior percentual de amostras fora do padrão microbiológico, sendo que tal fenômeno pode estar relacionado à diversidade morfológica encontrada.
Figura 1. Resultados dos testes de Gram em porcentagem por marca.
Coelho et al. (2001) selecionaram 174 colônias para identificação morfológica e todas foram identificadas como Gram-positivas, sendo 1,7% cocos e o restante bastonetes. A presença de cocos Gram-positivos, além de outros microrganismos, inclusive bacilos Gram-negativos, é descrita na literatura internacional por diferentes autores que afirmam ter o leite UHT uma microbiota originada de falhas durante o processamento e envase ou por recontaminações (SCHAAL; NOECKER, 1977; ID; SCHAAL, 1979; LEE, 1984).
Os problemas relacionados ao leite UHT também podem ser atribuídos a microrganismos termorresistentes formadores de esporos, principalmente do gênero Bacillus, que sobrevivem ao processo UHT (HUEMER et al., 1998; ZACARCHENCO et al., 2000).
Os resultados das análises físico-químicas estão apresentados na Tabela 2. Para as 150 amostras analisadas, 4,3% dos resultados de densidade, 7,4% dos resultados de acidez titulável, 29% dos resultados do teor de gordura e 50,7% dos resultados de ESD estavam em desacordo com a Portaria 146. Não houve diferença nos resultados físico-químicos nas amostras incubadas a 35-37 ºC por 7 dias quando comparadas às amostras analisadas sem incubação.
Tabela 2. Número de amostras por marca que apresentaram alguma análise físico-química em desacordo com o padrão estabelecido pela legislação*
Arruda et al. (2007) encontraram 10% dos resultados de acidez titulável e do teor de gordura e 100% dos resultados de ESD das 100 amostras de leite UHT avaliadas no Rio de Janeiro em desacordo com o RTIQ.
As trinta amostras de leite UHT analisadas por Martins et al. (2008) em um laticínio de São Paulo estavam de acordo com os parâmetros de acidez titulável e gordura estabelecidos pelo RTIQ, porém, com relação ao ESD, nenhuma das amostras atendeu ao estabelecido. Os autores relacionaram o baixo ESD a um aumento no teor de água, tendo em vista que o índice crioscópico também apresentou resultados alterados. No entanto, no presente estudo, todas as amostras apresentaram-se dentro dos padrões para a o índice crioscópico.
Analisando os resultados obtidos por marca avaliada, a marca X apresentou 46%, 10% e 2% dos resultados dos teores de extrato seco desengordurado (ESD), teor de gordura e densidade, respectivamente, abaixo do mínimo estabelecido pela legislação. Em duas amostras a acidez titulável foi de 0,19% de ácido lático. A marca Y apresentou 86%, 77% e 6% dos resultados de ESD, gordura e densidade, respectivamente, abaixo do mínimo estabelecido pela legislação. Em 03 amostras os resultados de acidez titulável variaram de 0,11 a 0,13% de ácido lático podendo ser indicativo de neutralização da acidez titulável por agentes alcalinos. Na marca Z, 18% dos resultados de ESD apresentaram-se abaixo do mínimo. Em 10% das amostras, a acidez titulável encontrada foi de 0,19 e em 2%, 0,13% de ácido lático. Notadamente, os teores de ESD e gordura foram os que estiveram abaixo do mínimo.
Todas as amostras das três marcas estavam dentro dos padrões para as análises de índice crioscópico e estabilidade em álcool. Estes dados coincidem com os encontrados por Silva (2004) em amostras de leite UHT comercializados em São Paulo, Rio Grande do Sul e Goiás. O autor sugere que o conservante citrato de sódio que é adicionado ao produto pode ter influência no resultado do índice crioscópico, uma vez que diminui o ponto de congelamento do leite. No entanto, o Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade para leite UHT não estabele parâmetro de qualidade para este quesito.
Conclusão
Apesar da importância comercial e nutricional que o leite UHT desempenha no mercado brasileiro, podem ser encontradas irregularidades técnicas neste produto, quando comparados resultados de análises microbiológicas e físico-químicas aos padrões da legislação vigente.
Referências
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***O artigo foi originalmente publicado em Semina: Ciências Agrárias, Londrina, v. 31, n. 3, p. 645-652, jul./set. 2010.