INTRODUÇÃO
O leite é um alimento altamente nutritivo, composto por aproximadamente 87,3% de água e, 12,7% de sólidos totais, distribuídos da seguinte forma: 3,3 a 3,5% de proteínas totais, 3,5 a 3,8% de gordura, 4,9% de lactose, 0,7% de minerais, além de vitaminas (SGARBIERI, 2005).
A qualidade do leite pode ser afetada por diferentes fatores. Entre os mais significativos está a mastite, doença que afeta a glândula mamária de fêmeas lactentes e promove um aumento na ocorrência de células somáticas no leite. O aumento na contagem de células somáticas (CCS) provoca queda na produtividade, além de influenciar na composição do leite, na atividade enzimática, tempo de coagulação, rendimento e qualidade dos derivados lácteos (KITCHEN, 1981; ARASHIRO, 2006).
As principais alterações relatadas pela literatura na composição do leite com elevada CCS são: aumento no teor de proteína, porém, com uma redução na fração caseínica, além de redução nos teores de gordura e lactose (BALLOU et al., 1995). Por outro lado, alguns autores relatam um aumento no teor de gordura em leites com elevada CCS (PEREIRA et al., 1999; MACHADO et al., 2000).
A legislação brasileira prevê limites para a CCS no leite por meio da Instrução Normativa nº 62 (IN62) do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que estabelece um cronograma para a redução gradual em função da região, de modo a melhorar a qualidade do leite produzido no país. Além disso, a IN62 define os requisitos físicos, químicos e microbiológicos do leite, entre eles, teor de gordura, proteína e extrato seco desengordurado (BRASIL, 2011).
A relação direta existente entre a ocorrência de mastite e alterações nos composição centesimal justifica a necessidade de estudos que avaliem o impacto da CCS sobre a qualidade do leite. Tendo em vista esses aspectos, objetivou-se avaliar a influência da CCS sobre os componentes do leite.
MATERIAL E MÉTODOS
Nesse trabalho foram utilizados dados de amostras de leite analisadas no laboratório da Asso ciação Paranaense de Criadores de Bovinos da Raça Holandesa. Esse laboratório faz parte da Rede Bra sileira de Laboratórios de Controle da Qualidade do Leite (RBQL), certificado oficialmente pelo MAPA e recebe amostras de leite principalmente da região Sul e Sudeste do país.
Foram avaliadas 156.465 amostras de leite, durante o período de julho a setembro de 2012, analisadas por citrometria de fluxo no equipamento BentleyNexgen (BentleyInstruments Inc.). Foram determinadas a CCS e os teores de proteína, gordura, lactose, sólidos totais, caseína e extrato seco desengordurado (ESD). Os resultados foram comparados com os parâmetros estabelecidos pela IN62 (BRASIL, 2011), para determinar a quantidade amostras em conformidade com a legislação vigente para os respectivos parâmetros.
Os dados foram tabulados individualmente em programa de gestão de banco de dados (MS Access 2010, Microsoft Co.), de acordo com a data de coleta, local e produtores, sendo posteriormente submetidos às avaliações estatísticas, utilizando-se o programa Statistica 8.0 (StatSoft Inc.).
Para avaliar o comportamento dimensional estatísticos, os dados de cada variável estudada foram submetidos à análises de estatística descritiva. Por meio de análise de correlação linear de Pearson, foi determinada a estimativa de dependência entre os resultados de CCS e os obtidos para as variáveis de composição das amostras de leite. A significância dos coeficientes de correlação obtidos foi verificada pelo teste de t. Os resultados de CCS foram também agrupados por quartis. As médias de composição referentes a cada quartil foram comparadas entre si por teste de Student-Newman-Keuls, corrigido para amostras de tamanhos desiguais. Para todas as avaliações estatísticas realizadas, foi adotando o nível de 95% de confiabilidade.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A CCS apresentou elevado coeficiente de variação, o que indicouuma grande variabilidade dessa contagem nos rebanhos (Tabela 1).
Tabela 1 – Estatística descritiva a partir dos dados de amostras de leite da Associação Paranaense de Criadores de Bovinos da Raça Holandesa, entre julho a setembro de 2012 (n=156.465).
Entre os componentes do leite, a gordura apresentou maior coeficiente de variação, seguida pelos teores de caseína, proteína, sólidos totais, ESD e, finalmente, o componente que apresentou menor variação foi a lactose. Estes dados estão de acordo com o encontrado por Machado et al. (2000). Os autores sugerem que a fonte da variação da gordura seja de ordem genética, fisiológica e ambiental, e por isso são muito variáveis.
A IN62 estabelece que os teores mínimos de sólidos totais devem ser de 11,4%, proteína 2,9%, gordura 3,0%, ESD, 8,4% e CCS, máximo de 600.000 CCS/mL de leite para as regiões Sul, Sudeste e Centro- Oeste durante o período deste estudo (BRASIL, 2011). A média geral dos resultados de gordura (3,73%), proteína (3,21%) e ESD (8,63%) estão acima do previsto pela legislação brasileira. Estes dados indicam que o leite produzido na região Sul do país é oriundo de um rebanho com boa genética e bem alimentado. O leite com elevado teor de sólidos é de grande interesse para a indústria, pois aumenta o rendimento de derivados lácteos, principalmente, queijos e leite em pó.
No entanto, 13,8% das amostras avaliadas estavam em desconformidade para os teores de gordura, 12,7% para proteína e 24,6% para ESD, ou seja, apresentaram resultados abaixo do valor previsto pela legislação para estes componentes (Tabela 2). Com relação à CCS, 21,8% das amostras apresentaram resultados acima do previsto pela legislação, indicando a presença de animais com mastite nestes lotes avaliados.
Tabela 2 – Amostras de leite analisadas pela Associação Paranaense de Criadores de Bovinos da Raça Holandesa entre julho e setembro de 2012, em desconformidade com os parâmetros estabelecidos pela Instrução Normativa 62 (n=156.465).
A qualidade do leite produzido no Brasil frequentemente tem se mostrado em desacordo com os padrões regulamentados pela legislação vigente (NERO et al., 2005; ZANELLA et al., 2006). Do total de amostras analisadas, 28,1% estavam desconformidade em um dos parâmetros estabelecidos pela IN62, 13,5% em dois parâmetros, 5,4% em três, 0,4% em quatro, perfazendo um total de 47,4% das amostras desconformes com a legislação (Tabela 3). Este é um dado preocupante, pois evidencia que a real qualidade do leite produzida no Brasil ainda está longe do padrão regulamentado.
Tabela 3 – Número de amostras de leite analisadas pela Associação Paranaense de Criadores de Bovinos da Raça Holandesa entre julho e setembro de 2012, que estavam com desconformidades em relação aos parâmetros estabelecidos pela Instrução Normativa 62 (n=156.465).
Praticamente a metade do leite avaliado nesse estudo está em desconformidade com os padrões estabelecidos pela legislação vigente, o que evidencia a dificuldade dos produtores para atingir os padrões de qualidade previstos pela IN62. A redução gradual nos limites de CCS e CBT tem por objetivo a melhoria na qualidade do leite produzido no país, no entanto, a realidade ainda está muito aquém do esperado e, com o estabelecimento de novos limites a partir de 01/07/2014 (Região Sul, Sudeste e Centro-Oeste), a porcentagem de amostras em desconformidade tende a ser ainda maior, se medidas práticas e aplicadas não forem tomadas o mais rápido possível.
A influência da concentração de células somáticas sobre os constituintes do leite é muito discutida e os resultados relatados na literatura são muito divergentes. A CCS apresentou correlação positiva com a porcentagem de gordura, ou seja, o leite com maior CCS apresentou mais gordura (Tabela 4). Geralmente a porcentagem de gordura é diminuída em leite de animais com mastite, no entanto, se a redução da produção de leite for mais acentuada que o decréscimo da produção de gordura ocorrerá concentração deste componente (PEREIRA et al., 1999; MACHADO et al., 2000). A relação entre gordura e CCS pode ser positiva, negativa ou nula, dependendo do rebanho avaliado.
Tabela 4 – Coefi cientes de correlação linear de Pearson (r) entre Contagem de Células Somáticas (CCS) e os componentes do leite, obtidos a partir dos dados de amostras de leite da Associação Paranaense de Criadores de Bovinos da Raça Holandesa, entre Julho a Setembro de 2012 (n=156.465).
Os resultados experimentais relatados na literatura também são conflitantes com relação à influência da CCS no teor de proteína. Nesse trabalho, a proteína não apresentou correlação significativa com a CCS, ou seja, não sofreu influência em função desta variável. Estes dados discordam do relatado por Machado et al. (2000), que encontraram menores porcentuais de proteína em leite com elevado teor de CCS. Em contrapartida, outros autores relatam um aumento no teor de proteína em leite com elevada CCS (URECH et al., 1999; PEREIRA et al., 1999). Santos (2003) afirma que o efeito final da mastite sobre o teor de proteína total geralmente é pequeno, o que muda são as proporções entre as proteínas do soro e caseína. De acordo com o autor, a síntese de caseína é diminuída e a há um aumento no teor de proteínas do soro, em função do influxo aumentado de substâncias do sangue para o leite.
Alguns autores afirmam que o leite com alta CCS apresenta menor teor de caseína (BALLOU et al., 1995; URECH et al., 1999; SANTOS, 2003; ARASHIRO et al., 2006). A caseína pode ter seu teor reduzido no leite de animais com CCS elevada em função da ação de enzimas proteolíticas associadas à mastite, que a hidrolisam ainda no interior do úbere do animal (ZAFALON et al., 2008). Esses dados são discordantes do encontrado nesse estudo, uma vez que a caseína apresentou correlação positiva com a CCS. Esta correlação foi significativa, apesar de ser pequena. A redução da caseína representa um prejuízo econômico significativo, tendo em vista que o teor deste componente do leite está diretamente relacionado com o rendimento na produção de queijos.
Já a lactose apresentou correlação negativa com a CCS. Esta redução no teor de lactose no leite com elevada CCS é causada pela inflamação da glândula mamária, que promove lesões nas células alveolares e levando a uma diminuição da síntese deste açúcar (ARASHIRO et al., 2006).
O extrato seco desengordurado (ESD) também apresentou correlação negativa com a CCS, enquanto que os sólidos totais tiveram correlação positiva devido à influência do componente gordura neste grupo. Apesar da indústria valorizar o leite com elevado teor de sólidos, o aumento do teor de sólidos totais provocado pela elevada CCS não deve ser considerado, de forma alguma, como algo positivo. Isto por que a mastite diminui a produtividade e promove vários defeitos de qualidade no leite e seus derivados.
O aumento gradativo da gordura ocorreu em fun ção do aumento da CCS, bem como a redução da lac tose e do ESD (Tabela 5). Já a proteína e a caseí na não demonstram essa tendência, apesar da caseína ter apre sentado correlação positiva com a CCS.
Tabela 5 – Comparação entre as médias de resultados de componentes do leite, a partir de quartis*** de Contagem de Células Somáticas (CCS), dos dados de amostras de leite da Associação Paranaense de Criadores de Bovinos da Raça Holandesa, entre Julho a Setembro de 2012 (n=156.465).
Coelho (2009) ao agrupar os resultados em fun ção da CCS observou um aumento signifi cativo da gor dura, proteína e sólidos totais. Já a lactose não apre sentou diferença significativa entre os gru pos avaliados nesse trabalho.
As diferenças entre os resultados encontrados nes se trabalho com os relatados por outros pesquisadores podem ser justificadas por diferenças entre região, raças, fase e número de lactação, alimentação e manejo dos rebanhos avaliados em cada estudo.
Independentemente da influência que a elevada CCS exerce sobre os componentes do leite, este fator tem impacto negativo sobre a qualidade do leite, uma vez que promove outras alterações indesejadas, tais como, alterações enzimáticas que reduzem a qualidade dos derivados lácteos (SANTOS, 2003; ARASHIRO et al., 2006; COELHO, 2009).
CONCLUSÕES
Além da mitigação da qualidade do leite, o aumento de CCS, diretamente relacionada aos quadros de mastite, interfere significativamente na composição centesimal do leite, especialmente nos teores de gordura, lactose e caseína.
AGRADECIMENTOS
Ao laboratório da Associação Paranaense de Criadores de Bovinos da Raça Holandesa, por disponibilizar os dados utilizados no presente trabalho.
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O trabalho foi originalmente publicado pela Rev. Inst. Laticínios Cândido Tostes, Juiz de Fora, v. 68, n. 392, p. 18-22, mai./jun., 2013.