INTRODUÇÃO
Mineralização ou calcificação de grandes vasos é encontrada com bastante freqüência em artérias de animais domésticos. Sob o aspecto patogênico existem duas formas de mineralização: a distrófica, desencadeada pela mineralização de tecidos lesados, como em áreas de inflamação, degeneração e trombose; e a mineralização metastática que ocorre como resultado de hipercalcemia e/ou hiperfosfatemia (Nieberle e Cohrs, 1970; Robinson e Maxie, 1993). Apesar dessa definição de formas, persiste uma discussão sobre a possibilidade de lesões tissulares antecederem e predisporem a mineralização decorrente da elevação sérica dos níveis de cálcio e fósforo.
Quanto a sua localização, existem as mineralizações da zona média e da íntima dos vasos, ou uma combinação entre ambas. A apresentação mais importante é a mineralização da média. Em bovinos, a lesão inicia-se na aorta abdominal e progride gradualmente para a aorta torácica, sendo o aspecto macroscópico variável, dependendo de sua gravidade. Inicialmente, não são observadas alterações macroscópicas, mas com a progressão do processo aparecem pequenas elevações irregulares, com bordos salientes e depressão central. Em casos graves, essas placas podem alinhar-se em justaposição, tomando aspecto de pavimento (Nieberle e Cohrs, 1970).
Diferentes espécies são descritas na literatura como susceptíveis a mineralização de grandes vasos (Simpson e Bruss, 1979; Bundza e Stevenson, 1987; Shell e Saunders, 1989; Schwarz et al., 2002). Bovinos, caprinos, ovinos e eqüinos são as espécies em que a patologia é mais freqüentemente relatada (Creech, 1941; Nieberle e Cohrs, 1970). Creech (1941) relata a ausência de estudos de freqüência da mineralização aórtica nos Estados Unidos da América, apesar do grande número de diagnósticos de mineralização aórtica feitos por inspetores federais presentes em matadouros frigoríficos. Segundo Lynd et al. (1965), há indícios da presença de alterações similares a mineralização aórtica em bovinos na América do Sul desde 1912. Entretanto, não existem estudos no Brasil relacionados à incidência dessa patologia em bovinos.
O achado freqüente de lesões sugestivas de mineralização na aorta abdominal e torácica de bovinos necropsiados no setor de patologia veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais, associado à carência de informações relacionadas à freqüência dessa patologia, estimularam o estudo da prevalência da alteração em bovinos procedentes de diferentes municípios mineiros.
MATERIAL E MÉTODOS
Inicialmente, foram estudadas 96 aortas torácicas de bovinos, de idades variadas, abatidos em frigorífico de Belo Horizonte. A avaliação macroscópica das mesmas demonstrou a existência de lesões compatíveis com mineralização aórtica, que, eventualmente, comprometiam 100% da parede arterial, com conseqüente alteração de seu eixo anatômico. Com base nesses dados preliminares, calculouse, pela tabela de dispersão de freqüências, a amostragem necessária para 5% de intervalo de confiança (Sampaio, 1998).
Foram examinadas 783 aortas torácicas de bovinos de ambos os sexos, de idades variadas e procedentes de 17 diferentes localidades de Minas Gerais (Algodoeiro, Araújo, Augusto de Lima, Betim, Capitão Enéas, Coluna, Conselheiro Lafaiete, Corinto, Crucilândia, Engenheiro Dolabela, Furquilha do Espinho, Guanhães, João Pinheiro, Paraopeba, Paulista, Pompéu e Ubá).
Todas as aortas foram classificadas, macroscopicamente, em normais ou portadoras de lesões. As lesões foram classificadas em graus I, II, III ou IV, segundo sua intensidade. Lesões de grau I consistiram de pequenas placas isoladas, de 1,0 a 2,0mm de diâmetro, salientes na íntima interna, com bordas ligeiramente elevadas, ligeiramente côncavas e de consistência firme. Em lesões de grau II foram observados aglomerados de cinco a 10 placas pequenas em algumas áreas do vaso, com cerca de 1,0 a 2,0mm de diâmetro cada, e aspecto semelhante ao descrito no grau I. No grau III, as placas apresentavam distribuição linear longitudinal ao vaso, com cerca de 5,0mm de diâmetro cada. E no grau IV, a superfície do vaso estava comprometida e irregular em área maior ou igual a 80%, com placas de cerca de 10,0mm de diâmetro, de superfície saliente, bordas elevadas, côncavas, quebradiças, de consistência firme, e que rangiam ao corte.
Fragmentos representativos de vasos de aspecto normal e com lesões de vários graus foram fixados em formalina tamponada a 10%, posteriormente processadas por técnicas rotineiras de inclusão em parafina, coradas pela técnica de hematoxilina-eosina (Luna, 1968) e examinadas ao microscópio ótico.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Dentre as 783 aortas estudadas, 298 (38,1%) apresentaram lesões macroscópicas sugestivas de mineralização, assim classificadas: 180 (23,0% do total de aortas avaliadas) com lesões de grau I, 59 (7,5%) de grau II, 35 (4,5%) de grau III e 24 (3,1%) de grau IV (Fig. 1).
Os fragmentos aórticos estudados nesta amostragem apresentavam, à microscopia, lesões que se restringiam à túnica íntima e média. Na túnica íntima notaram-se áreas focais de degeneração e necrose, acompanhados por proliferação de tecido conjuntivo subendotelial. Na túnica média foram observados graus variáveis de calcificação de fibras elásticas, principalmente na limitante elástica interna (Fig. 2). Somente um caso de metaplasia foi diagnosticado, sendo observada formação de tecido cartilaginoso e ósseo na túnica íntima (Fig. 3).
Na distribuição quanto ao sexo, dentre os 689 animais passíveis de identificação, 67 (9,7%) eram machos castrados, 404 (58,6%) machos inteiros e 218 (31,6%) fêmeas. Cento e dezenove (54,6%) aortas de fêmeas, 34 (50,7%) aortas de machos castrados e 111 (27,5%) aortas de machos inteiros apresentaram lesões (Tab. 1). Nas fêmeas (54,6%) e nos machos castrados (50,7%) a freqüência de mineralização aórtica foi mais elevada que nos machos inteiros. Quanto à condição fisiológica, possível fator de risco para a doença, Arnold e Fincham (1950) observaram sinais clínicos mais graves de mineralização aórtica em vacas gestantes e em fêmeas entre 15 e 24 meses. Nesses indivíduos, a gravidade dos sinais afetou não apenas os vasos sangüíneos, mas também o tecido pulmonar.
Figura 1. Diferentes graus de lesões macroscópicas de mineralização aórtica em bovinos ao abate. As lesões caracterizam-se por placas firmes de coloração esbranquiçada, bordos salientes, depressão central e aspecto irregular na parede arterial.
Figura 2. Corte histológico de aorta toracoabdominal de bovino com mineralização aórtica. Note a área de calcificação linear e irregular de fibras elásticas na túnica média (seta branca). HE, 100x.
Figura 3. Metaplasia óssea na túnica média da aorta de bovinos onde se observa tecido cartilaginoso (seta branca) e ósseo (seta preta). HE, 100x.
Tabela 1. Distribuição de bovinos avaliados em matadouro oriundos de diferentes municípios de Minas Gerais, segundo achados macroscópicos característicos de mineralização de aorta, distribuídos por sexo, idade e raça
Foi possível uma avaliação do grupo genético de 436 animais estudados, assim classificados: zebu puro, zebuínos mestiços de dupla aptidão e animais mestiços sem raça definida (SRD) (Tab. 1). Os animais zebuínos mestiços de dupla aptidão eram fêmeas girolanda de descarte. Esse grupo foi o que apresentou maior índice de lesões aórticas (59,3%). A maioria dos animais zebu puro era da raça Nelore, machos inteiros jovens (até três anos de idade). Esse grupo apresentou a menor freqüência (37,4%) de mineralização aórtica quando comparado com os dois outros grupos de mestiços (P<0,05). Desse modo, pode-se afirmar que a prevalência de mineralização aórtica é maior em fêmeas, em animais acima de três anos de idade, zebuínos mestiços de dupla aptidão.
Muito possivelmente houve interação idade, sexo e raça versus o manejo ao qual os animais estavam expostos, indicando, assim, possíveis fatores de risco para o desenvolvimento da mineralização aórtica. Entretanto, neste estudo não foi possível avaliar a interação entre essas variáveis, ou mesmo associa-las a potenciais fatores de risco. Segundo Nieberle e Cohrs (1970), esse tipo de patologia arterial em bovinos está mais relacionada a processos de calcificação metastática. Dentre as causas mais freqüentes de mineralização metastática arterial em bovinos citam-se a suplementação de vitamina D para fêmeas no periparto (Petrie e Breeze, 1977) e a ingestão prolongada de plantas calcinogênicas que possuem em sua constituição substâncias análogas à vitamina D, tais como 1,25- dihidrocolicalciferol (Creech, 1941; Bundza e Stevenson, 1987). Sendo Minas Gerais a maior bacia leiteira do país, é freqüente a manifestação de distúrbios metabólicos em animais de alta produção de leite. Na febre do leite, por exemplo, é usual realizar suplementação de vitamina D. Neste estudo descarta-se a ingestão de plantas calcinogênicas, pois, as duas únicas espécies relatadas no Brasil são a Solanum malacoxylon, encontrada no Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e a Nierembergia veitchii, presente somente no Rio Grande do Sul (Tokarnia et al., 2000). Entretanto, a possibilidade de existir espécies de plantas calcinogênicas, ainda não relatadas no estado de Minas Gerais, não pode ser desprezada. Dessa forma, são necessários estudos mais abrangentes tentando-se identificar potenciais fatores de risco para a elevada freqüência de mineralização aórtica bovina em Minas Gerais.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem o auxílio do Dr. Renato de Lima Santos na fase inicial do projeto e à Fapemig pelo auxílio para publicação do artigo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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