Introdução
Existe uma demanda crescente na produção de alimentos em todo o mundo, e o controle de riscos microbiológicos, químicos e físicos durante toda a cadeia de produção é um desafio constante (RUBY et al., 2019). O risco microbiológico é o mais difícil de ser controlado, pela dificuldade na implantação de um correto manejo sanitário (DANIELSKI et al., 2020). Autoridades regulatórias de segurança alimentar investem grandes esforços para sua mitigação (PLAZA-RODRÍGUEZ et al., 2018). No Brasil a regulamentação é feita pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) (BRASIL, 1999).
Uma falha nos métodos de controle de qualidade e produção pode levar ao aparecimento das Doenças Transmitidas por Alimentos (DTAs). Surtos de DTAs estão cada vez mais constantes em função do grande volume de produção das empresas, da globalização da cadeia produtiva de alimentos, e da resistência antimicrobiana aos métodos tradicionais de controle (VAN SEVENTER; HAMER, 2016). Estima-se que mais de 200 doenças possam ser transmitidas por água ou alimentos contaminados. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 600 milhões de casos de DTAs foram notificados no mundo todo em 2010, sendo os patógenos causadores de diarreia os mais prevalentes, com 550 milhões de notificações (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2015). Entretanto, a maioria dos casos não são relatados aos órgãos de controle, principalmente em locais de difícil acesso a serviços de saúde, acreditando-se que o número real de DTAs seja muito maior (BHASKAR, 2017).
Produtos de origem animal são a principal fonte de proteína em todo o mundo, com um consumo diário estimado em 80 g per capita (SANS; COMBRIS, 2015). Pelo aumento na produção para atingir os níveis de consumo, os riscos microbiológicos foram potencializados, decorrentes de falhas nos processos de criação e abate dos animais, ou ainda no processamento e transporte da carne (SHANG; TONSOR, 2017). Essas falhas podem resultar em contaminação dos alimentos por Salmonella spp., Campylobacter spp., Escherichia coli, Clostridium spp., Staphylococcus aureus,dentre outros (LI et al., 2019; PIRES et al., 2018). Muitas dessas bactérias possuem alta prevalência na produção animal, podendo chegar até o consumidor quando não utilizadas estratégias de controle eficazes. Dessa forma, é objetivo desta revisão reunir informações acerca de um método de controle que tem se mostrado promissor em análises in vitro.
Desenvolvimento
Dentre as bactérias potencialmente causadoras de DTAs, destacam-se as do gênero Salmonella, um dos patógenos mais isolados em casos de surtos alimentares, responsável mundialmente por 98,3 milhões de casos e 155 mil mortes todos os anos (ENG et al., 2015).
Bactérias do gênero Salmonella são pertencentes à família Enterobacteriaceae, e estão presentes no trato intestinal de répteis, aves e mamíferos (RYAN; O’DWYER; ADLEY, 2017). Este gênero é composto por bacilos gram-negativos com flagelos peritríquios (numerosos flagelos com diversos pontos de inserção ao redor da bactéria). Uma das exceções é a Salmonella Gallinarum, a qual é atríquia (MINAMINO et al., 2018). Além disso, algumas características fisiológicas e metabólicas da maioria desse gênero é que são anaeróbicas facultativas, oxidase negativas e catalase positivas, produtoras de sulfeto de hidrogênio e não formadoras de esporos. A maioria dos serovares é urease negativa, ornitina positiva e lisina positiva (LEE et al., 2015), com crescimento ótimo em pH 6,5 a 7,5 e atividade de água (aw) ≥ 0,98, e inibição do crescimento em pH abaixo de 4,5 e acima de 9,6, e aw menor que 0,94 (SMITH et al., 2016). Suas características bioquímicas são importantes para determinação de susceptibilidade de riscos e estratégias para controle.
Atualmente o gênero possui três espécies, Salmonella enterica, Salmonella bongori e Salmonella subterranea,sendo as duas primeiras amplamente caracterizadas e a terceira ainda não totalmente aceita na comunidade científica, considerada como uma variante de S. bongori ou ainda como outras espécies (CRISCUOLO et al., 2019; HATA et al., 2016). Dentro das espécies existe uma grande divisão por serovares, sendo documentadas aproximadamente 2600 classificações (YOSHIDA et al., 2016).
Os serovares são classificados de acordo com sua composição antigênica, com utilização dos antígenos O (somáticos), H (flagelares) e Vi/K (capsulares) (SHI et al., 2015). Os antígenos O são polissacarídeos termoestáveis presentes na camada de lipopolissacarídeos da membrana celular, e a variação entre as ligações dos antígenos são as responsáveis por sua caracterização (DE BENEDETTO et al., 2017). Os antígenos H são diferentes tipos de flagelinasexpressos na porção filamentosa do flagelo bacteriano. A forma de expressão desse antígeno (mono ou bifásica) e o tipo de flagelina expressa são utilizados para diferenciação dos serovares (RAMACHANDRAN et al., 2016). Os antígenos Vi/K são expressos apenas em Salmonella Typhi, Salmonella Dublin e Salmonella Paratyphi (LISTON;OVCHINNIKOVA; WHITFIELD, 2016).
Animais de produção, especialmente suínos, são altamente infectados por Salmonella spp., responsável principalmente por gastroenterites moderadas ou graves, acarretando perda de desempenho, queda em índices de bem-estar animal, prejuízo ao produtor e aumento no risco de contaminação da carcaça (ZHOU et al., 2018). Além disso, podem causar o tifo aviário (S. Gallinarum), pulorose (Salmonella Pullorum), paratifo aviário (S. Paratyphi), dentre outras doenças, não afetando diretamente a segurança alimentar, mas interferindo nos índices produtivos e nos ganhos do produtor (BIAZUS et al., 2017).
Há destaque para a presença do patógeno na produção de suínos e frangos de corte, diagnosticada por exigência de muitos órgãos regulamentadores a nível mundial. No Brasil, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) normatiza o controle sanitário da produção animal, desde a criação até o abate e processamento da carne. A presença de Salmonellaspp. na produção de frangos é regulamentada pela Instrução Normativa (IN) nº 20/2016, enquanto a regulamentação na produção suína é determinada pela IN nº 60/2018 (BRASIL 2016; 2018).
Os maiores produtores de carne de suínos e de frango no mundo são China, União Europeia (UE), Estados Unidos da América (EUA) e Brasil (USDA, 2019). Não há informação sobre a prevalência da bactéria no plantel suíno chinês, entretanto, estudos mostraram contaminação de 10,7% a 71,8% dos abatedouros suínos do país (ZHOU et al., 2017, 2018). Em análises feitas no plantel europeu, a prevalência foi de até 29% (SNARY et al., 2016). Amostras coletadas nos EUA demonstraram uma prevalência de 14,2% nos animais e contaminação de 52,9% nos ambientes de produção (BJORK et al., 2018). Já no Brasil, o maior estado produtor de suínos, Santa Catarina, apresentou prevalência de 39% (KICH et al., 2011). Estudos apontam que o aumento da contagem de Salmonella spp. no intestino de suínos pode impactar negativamente a qualidade da carne, aumentando sua contaminação na linha de abate e consequentemente os riscos para o consumidor (PESCIAROLI et al., 2017), além da queda nos índices produtivos dos animais. Estima-se que na UE 31% da salmonelose humana tenha como origem o consumo de carne de suínos contaminada (RÖNNQVIST et al., 2018). Já estudos retrospectivos nos EUA (1998-2015) relatam 6372 casos de salmonelose humana relacionados à carne suína no período (SELF et al., 2017).
Quando observados dados da produção de frangos de corte, foi relatada prevalência de 11% de Salmonella spp. no plantel chinês (WANG et al., 2017). Na UE a prevalência dos animais foi de 27%, enquanto que em amostras ambientais de aviários foi de 90,9% (KOUTSOUMANIS et al., 2019). Nos EUA, o maior estado produtor, Georgia,apresentou prevalência de 15,6% (ALALI et al., 2016). Quanto à produção brasileira de frangos de corte, relatou-se uma prevalência de 5% no plantel de Santa Catarina, segundo estado maior produtor do país (GIOMBELLI; GLORIA, 2014). Tal como na produção de carne de suínos, a carne de frango também pode ser afetada pela alta presença de Salmonella spp. nos animais no momento do abate. O consumo de carne de frango contaminada com Salmonella spp. foi a principal causa de surtos alimentares dos EUA de 1998 a 2012 (ROUGER; TRESSE; ZAGOREC, 2017). Estratégias de higiene devem ser aplicadas nas linhas de abate para minimizar o problema, porém o controle deve ser constante ainda durante a criação para contribuir com um produto seguro ao consumidor (HEYNDRICKX et al., 2002).
Dados atualizados sobre a bactéria na produção animal são escassos, destacando a necessidade de maiores estudos acerca da prevalência da bactéria, principalmente na China e no Brasil, com foco no desenvolvimento de métodos para mitigar seus efeitos nos animais e consumidores. Destaca-se a importância da bactéria na saúde pública, com falhas na produção animal como agravante ao seu controle. Estratégias devem ser empregadas para minimizar o número de animais infectados, além da determinação da Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC) no abatedouro, importante medida para identificação das possíveis falhas na linha de abate e de como evitá-las.
A partir do final da década de 50 houve um aumento no número de trabalhos relatando resistência antimicrobiana em Salmonella spp. (HUEY; EDWARDS, 1958; WATANABE; WATANABE, 1959), coincidindo com o início do uso de antibióticos em subdosagem como melhoradores de desempenho. Até então, 200 serovares eram conhecidos, com ampla utilização de antibióticos para seu controle (FLIPPIN; EISENBERG, 1959). Atualmente, há relatos de resistência in vitro a diversos fármacos antimicrobianos, como cefalosporinas de amplo espectro, ampicilina, tetraciclinas, amoxicilina, cloranfenicol, sulfonamidas quinolonas e aminoglicosídeos (EVANGELISTA et al., 2021; KHAN et al., 2019; PROCURA et al., 2019; SHIGEMURA et al., 2018; XU et al., 2018; ZHU et al., 2019).
Uma das causas para o aparecimento da resistência é a utilização indiscriminada de antibióticos, tanto em doses terapêuticas, para controle de doenças bacterianas, como em doses subterapêuticas, como melhoradores de desempenho (CORRÊA et al., 2019). Essas bactérias resistentes representam um risco para a saúde humana e animal, pois são responsáveis por patologias de difícil tratamento (SCOTT et al., 2018; ZHU et al., 2019). Como responsáveis peloaumento nos casos de resistência a antibióticos, podemos ainda citar a utilização em larga escala na saúde humana sem respeito ao devido protocolo, utilização não criteriosa de antibióticos de última geração, ausência de regulamentação para venda em diversas partes do mundo, aumento no trânsito de pessoas entre países e resíduos de antibióticos em água (AYUKEKBONG; NTEMGWA; ATABE, 2017; HOLMES et al., 2016).
Estima-se que os EUA invistam anualmente de dois a quatro bilhões de dólares para tratamento da salmonelose humana, sendo a resistência antimicrobiana um fator crítico para o aumento dos custos e tempo de tratamento (VALENZUELA et al., 2017). Fica evidente a importância da Salmonella spp. tanto na saúde humana quanto na saúde animal, existindo uma íntima ligação entre contaminação na produção animal e a salmonelose humana. Estratégias vêm sendo desenvolvidas para controle do patógeno, como a utilização em ração de produtos de fermentação, pró e prebióticos, óleos essenciais, e uso de bacteriófagos (BOCATE; EVANGELISTA; LUCIANO, 2021; GRANT; HASHEM; PARVEEN, 2016; HEITHOFF et al., 2015).
Fermentados bacterianos são produtos resultantes do metabolismo de bactérias fermentadoras, possuindo componentes com potencial atividade antimicrobiana. Os produtos podem conter o agente fermentador ou não (SANTAMARÍA-FERNÁNDEZ et al., 2017). São escolhidos pela origem natural e por serem compostos não indutores de resistência, originados por microrganismos largamente utilizados na saúde humana e animal, reconhecidamente benéficos ao organismo (DANIELSKI et al., 2020).
Os sobrenadantes livres de células (SLCs) são um tipo de fermentado bacteriano, produzidos a partir do crescimento de bactérias em meio de cultivo, seguido de processo de filtração esterilizante. Durante seu processo de crescimento, espera-se a produção de metabólitos que fiquem dispersos pelo meio. Variações são propostas, como tempo de incubação, temperatura e pH, entretanto o princípio básico se mantém. Quando utilizadas bactérias ácido lácticas (BALs) para sua produção, preconizase a utilização do caldo De Man, Rogosa e Sharpe (MRS), com composição adequada de açúcares para atender as necessidades fermentativas das bactérias inoculadas (SIRICHOKCHATCHAWAN et al., 2018; XING et al., 2015).
Poucos estudos avaliaram a composição desse tipo de fermentado antimicrobiano. LIM et al. (2018) demonstraram que a composição do SLC de Weissella cibaria consiste em peróxido de hidrogênio, ácidos orgânicos (principalmente dos ácidos láctico, acético e cítrico), ácidos graxos (principalmente ácidos oleicos e palmíticos) e proteínas/proteináceos. SHEHATA et al. (2019) demonstraram através de cromatografia gasosa a presença de 7 compostos bioativos produzidos por Lactobacillus spp. e presentes em seus SLCs, responsáveis por grande parte de sua ação antimicrobiana quando excluído o efeito de peptídeos antimicrobianos e do ácido láctico: 6-ácido octadecanóico; ácido hexadecanóico; fenol,2,4-bis(1,1-dimetiletil)-; (Z)-7-hexadecenal, pentadecano, dotriacontano e 2-metil-decano.
Estudos demonstram a necessidade combinada dos diversos componentes para obtenção de uma atividade antimicrobiana efetiva, sendo os compostos principais o ácido láctico, bacteriocinas e peptídeos antimicrobianos análogos a bacteriocinas (BERISTAIN-BAUZA et al., 2016).
Com mecanismos de ação ainda não totalmente elucidados, estudos sobre a utilização de SLC para controle de bactérias patogênicas de relevância na produção animal vêm crescendo nos últimos anos, tornando-os uma alternativa de controle microbiológico de produtos de origem animal (ADETOYE et al., 2018). Hipóteses sobre seus mecanismos ainda estão sendo desenvolvidas, baseadas no pH de ácidos orgânicos produzidos, na acidificação do citoplasma bacteriano por ácidos graxos ionizados e na presença de substâncias com potencial para romper/desestabilizar a membrana plasmática do patógeno (SIRICHOKCHATCHAWAN et al., 2018).
Foi demonstrada uma efetiva inibição no crescimento de Salmonella Typhimurium pelo SLC produzido por Lactobacillus rhamnosus GG (GOYAL; KANNAN, 2018). Também é relatado efeito inibitório dos SLCs de Lactobacillus plantarum isolados de silagem de milho contra S. enterica, E. coli e Micrococcus luteus (LI et al., 2015). Os SLCs produzidos por Lactobacillus salivarius e Lactobacillus amylovorus isolados de fezes bovinas demonstraram atividade antimicrobiana in vitro contra Salmonella spp., também isolada de fezes (ADETOYE et al.,2018). Com grande parte dos estudos utilizando SLCs contra patógenos em meios de cultivo, há carência de relatos de suas capacidades antimicrobianas em diferentes substratos voltados à saúde animal.
Além de possuir atividade antimicrobiana sobre os patógenos, os SLCs também demonstram efetividade na inibição da produção de metabólitos bacterianos em alimentos, causadores de efeitos toxicológicos. Estudos mostraram a ação inibitória na produção de aminas biogênicas de Staphylococcus aureus ATCC 29213, E. coli ATCC 25922, Listeria monocytogenes ATCC 7677 e S. Paratyphi A NCTC 13 com a utilização de SLCs produzidos por Lactococcus lactis lactis IL 1403, Leuconostoc mesenteroides cremoris DSMZ 20346, Pediococcus acidophilus ATCC 25741 e Streptococcus thermophilus NCFB 2392 (ÖZOGUL et al.,2017).
Diante da grande prevalência de Salmonella spp. na produção de suínos e frangos e seu reflexo na saúde pública, há necessidade de estratégias de controle que atuem desde o período de criação dos animais.
Considerações finais
Embora ainda não totalmente elucidada, pode-se observar que a fermentação bacteriana na forma de SLCs pode ser uma opção viável para o controle de Salmonella na produção animal. A pesquisa in vitro é necessária para determinar a composição dos SLC e desenvolver técnicas que maximizem a produção de substâncias antimicrobianas, além da pesquisa in vivo que demonstre a eficácia dos compostos no organismo animal, além de estabelecer técnicas de suplementação dos compostos para os animais.
Agradecimentos
Os autores gostariam de agradecer à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, Brasil, Código Financeiro 001) pelo financiamento deste trabalho.
Conflitos de Interesse
Os autores relatam a ausência de conflitos de interesse na escrita e publicação deste trabalho.
Esse artigo foi originalmente publicado em Arquivos de Ciências Veterinárias e Zoologia da UNIPAR, Umuarama, v. 24, n. 1cont., e2410, 2021 DOI:
https://doi.org/10.25110/arqvet.v24i1cont.2021.8543 | https://www.researchgate.net/profile/Alberto-Goncalves-Evangelista/publication/353958143_Presence_of_Salmonella_spp_in_animal_production_and_the_use_of_bacterial_fermentations_to_mitigate_risks_-_a_literature_review/links/611c08da1ca20f6f862c9a41/Presence-of-Salmonella-spp-in-animal-production-and-the-use-of-bacterial-fermentations-to-mitigate-risks-a-literature-review.pdf
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