Em 2003, fui honrado com um convite para integrar uma iniciativa mundial, intitulada "The Food Sustainable Laboratory" (http://www.glifood.org/). O que pretende esse Laboratório? Criar cadeias de fornecimento de alimentos que sejam econômica, social e ambientalmente sustentáveis - ou seja, que sejam lucrativas e acessíveis economicamente, em equilíbrio com a natureza, e boas tanto para a comunidade dos produtores quanto dos consumidores.
O Laboratório de Alimentos Sustentáveis é integrado por uma equipe de 38 membros da Europa e das Américas, representando lideranças do setor empresarial, governamental, grupos de produtores rurais e organizações não-governamentais, reunidos pela Global Leadership Initiative, uma sociedade sem fins lucrativos.
Não temos bandeiras, não temos ideologia, ainda que individualmente sim, e na realidade constituímos pessoas das mais díspares. Um Secretariado composto de gênios (Hal Hamilton e Adam Kahane, entre outros) nos mantém juntos, focados no objetivo de construir um modelo mais sustentável para a cadeia de alimentos, e não na discussão de nossas diferenças nos enfoques de como fazê-lo.
Sustentabilidade - essa palavra anda na moda, mas não na avicultura. O que quer dizer sustentabilidade? Há inúmeras e válidas definições, complexas e simples, mas pela síntese vou lançar mão de uma que encontrei no site http://www.animal.com.br/:
"Sustentabilidade é a capacidade de se sustentar, de se manter."
"Desenvolvimento sustentável é aquele que melhora a qualidade da vida do homem na Terra ao mesmo tempo em que respeita a capacidade de produção dos ecossistemas nos quais vivemos."
Uma atividade sustentável apóia-se num tripé: valor econômico, valor social e valor ambiental. Se no seu exercício uma atividade não tiver valor econômico, ela inevitavelmente perecerá, ela não se sustenta, não se mantém.
Mas, se ao tripé da sustentabilidade bastasse o valor econômico, poder-se-ia perfeitamente revogar a Lei Áurea e voltar à escravidão. Aproveito para indagar se aqueles que devem sobreviver com o salário mínimo ou sem um mínimo de salário para prover as necessidades básicas de sua família não é o nosso "jeitinho", perfumado e moderno, de perpetuar a escravidão?
Uma atividade que não contribua ao desenvolvimento social vale tanto quanto uma sem valor econômico - não se pereniza, não se perpetua, não se sustenta. Conhecem centenas de exemplos de atividades que não contribuem ao desenvolvimento social, que explora o trabalhador, habitualmente o mais carente, o mais desprotegido e o menos ciente de seus direitos? Eu também. Basta ligar a televisão para termos notícias de explorados em fazendas, mantidos em quase cativeiro; de fiscais públicos assassinados ao combater o trabalho escravo em pleno século XXI; de político reclamando do copo de "pobre" em que lhe foi servido o champagne, enquanto os prédios que construiu com material de segunda
desabam com os sonhos, as ilusões e as vidas de pessoas como nós. Sem contar, naturalmente, o caso do ... deixa para lá, pois esta é uma revista de avicultura.
Quando ouvimos essas notícias, nós nos enojamos. Quando sabemos que um tênis foi costurado por uma criança de 11 anos, trabalhando 14 horas por dia num local insalubre, em um país asiático, nós nos revoltamos e, desta vez, temos como reagir à afronta boicotando aquela marca.
Eu lhe pergunto, leitor: você compraria ações de uma empresa que constrói seu valor econômico em detrimento do valor social, como no caso daquelas aberrações que listei acima? A resposta é não. Portanto, os falsos espertos enganarão alguns por algum tempo, mas não enganarão todos por todo o tempo (obrigado Presidente Lincoln - e por falar nisso, saudades!).
Vamos trazer o exemplo para dentro de casa. De um lado temos um frango produzido por uma empresa que não registra seus empregados, engana seus integrados, dá bico nos impostos e enche o frango de água para, espertamente, enganar o consumidor. Por outro lado, temos outra empresa que respeita a lei, seus funcionários, seus aliados - os integrados e fornecedores, o consumidor e que paga seus impostos, ainda que legitimamente busque reduzir a "não-sustentável" carga fiscal do Estado brasileiro.
Qual das duas você prefere? Não sabe? Então me deixe reformular a pergunta: se tivesse que escolher entre ser diretor da primeira empresa ou da segunda, por qual optaria? Onde gostaria de ter o seu nome publicado - no balanço da primeira ou da segunda?
Ainda não está convencido, turrão?!!! Pois bem, pense na primeira empresa e na segunda. Qual é a que mais progrediu? Qual é a que parece ter maior e melhor futuro? Qual a que tem o respeito do consumidor? Qual a que melhor contribui para a sociedade e o Brasil?
Não há gigante enganador, pois esta é prenda dos homúnculos, cujo único futuro é o de ser referência histórica, pois estão condenados a perecer, por mais saúde que seus cadáveres ambulantes aparentem.
Uma atividade sem valor social, ainda que com valor econômico, é como um cachorro desdentado ou, para trazer ao nosso âmbito, uma poedeira que não põe.
Falta a terceira perna do tripé - valor ambiental. Vou pedir ajuda ao gênio que é Jason Clay, Vice presidente do World Wildlife Fund, aquele WWF que tem o urso panda como símbolo. Em seu livro notável, World Agriculture and the Environment, dá-nos a receita perfeita quando diz: "Vivam como se fossem morrer amanhã e façam agricultura como se fossem viver para sempre". (Imagine, leitor, que devemos tê-lo como conferencista na AVE EXPO 2005)
Não adianta uma atividade ter valor econômico e valor social, se destruir o planeta, a curto ou a largo prazo, pois ela não será sustentável. Não adianta uma atividade que tenha valor econômico e valor social se ela degradar o planeta, pois seria o mesmo que colocar fogo na casa porque precisa se esquentar.
Há muita confusão quanto a sustentabilidade. Muitos a confundem como simplesmente sendo as atividades ecologicamente corretas, com a produção de orgânicos ou com as chamadas produções naturais, como nos velhos tempos. Não desejo entrar em conflito com os muitos amigos que tenho entre ativistas ecológicos, produtores de orgânicos ou os que defendem agricultura e pecuária "natural" versus a "industrial" ou em larga escala.
Mesmo correndo o risco de desagradar algum amigo, devo revelar que algumas das produções "naturais" são absolutos exemplos de não-sustentabilidade, pois não se sustentam a largo prazo. Os sucessivos episódios de HPAI na Ásia, apesar dos esforços
das autoridades nacionais dos países afetados e o apoio das organizações internacionais, são um triste e presente exemplo de que a pecuária de larga escala exige abrir mãos dos métodos de criação do passado histórico.
Nossos antepassados faziam suas criações mistas de aves, porcos, cavalos, gado, etc, no âmbito do habitat familiar ou da tribo. Animais de diferentes espécies, inclusive de companhia ou adestrados à caça, e seres humanos conviviam num mesmo espaço, usavam as mesmas fontes de água e dividiam tudo, inclusive doenças. A criação "antiga", "natural", muito defendida por ativistas bem-intencionados, gerava inevitáveis problemas, de cujo registro carecemos já que todos os episódios que dizimavam rebanhos e por vezes seus donos eram genericamente qualificados de peste ou atribuídos à fúria das divindades.
Hoje, a pecuária se expande a ritmo sem precedentes na história do mundo, buscando atender a uma população crescente de renda em expansão.
Essa evolução deveu-se à tecnologia e ciência que hoje nos permitem disponibilizar quantidades crescentes de proteína para um consumo mundial em expansão.
Os métodos "naturais", como muitos gostam de inadequadamente qualificar, não comportariam essa expansão do número de animais em criação no mundo, mormente quando as interações internacionais do mundo global maximizam os riscos de um vírus viajar de carona num avião, navio, caminhão ou nos sapatos de um visitante bem intencionado.
O mundo dos nossos ancestrais tinha realidades produtivas adequadas às necessidades de nossos ancestrais. Até os anos 50, o que limitava a expansão das áreas aráveis era a falta de gente e de meios, animais a princípio e mecânicos depois, para limpar florestas, drenar terras alagadas e irrigar terras sem água suficiente.
De 1700 a 1950, as terras cultiváveis quadruplicaram, passando de 265 milhões de hectares para 1,17 bilhão, em linha com o aumento da população mundial que passou de 750 milhões para 2,5 bilhões de pessoas.
Dos anos 50 para cá, a população mundial quase que dobrou, enquanto que as terras cultiváveis expandiram somente 23%, para 1,44 bilhão de hectares. Chegamos aos nossos dias, onde temos, para uma população mundial crescente, uma área agriculturável limitada, onde restam no mundo poucas áreas virgens susceptíveis de serem cultivadas, a maior parte na América do Sul, com destaque para o Brasil onde há uma reserva estimada em torno de 100 milhões de hectares.
A população mundial seguirá crescendo e teremos que seguir produzindo comida essencialmente na mesma superfície. O desafio será resolver essa equação sem destruir o planeta. Sustentabilidade não é, portanto, modismo, mas condição de sobrevivência.
Sábios calcularam na última reunião do World Agriculture Fórum, em maio de 2004, em St.Louis, nos Estados Unidos, que, para que o mundo tivesse o mesmo padrão de vida dos norte-americanos, haveria a necessidade de 6 a 8 novos planetas.
Não temos 6 a 8 planetas. Só temos um e é melhor que comecemos a nos preocupar em cuidar melhor dele.
O Dr.Hélio Mattar, do Instituto Akatu, diz que nosso planeta está doente. Basta ver a desertificação progressiva na África e Ásia, a alteração do clima do planeta graças ao efeito estufa, a poluição das águas, a devastação das florestas tropicais, a degradação da qualidade do ar, etc, para que se entenda o porquê dessa afirmação.
Busquem conhecer melhor o trabalho do Instituto Akatu e apoiar as iniciativas dessa instituição que prega consumo consciente, "Consumir sem consumir o mundo em que vivemos" (www.akatu.net). No site encontrarão indicações de pequenos passos que podem ajudar a começar a mudar a realidade do mundo hoje mesmo, pois quando mudamos nossos valores e conceitos por outros mais sustentáveis, mudamos o mundo.
O planeta está doente, mas não morrerá. Não corre risco. Quem corre risco é a vida humana sobre o planeta. Se continuarmos a devastar os recursos naturais, a vida humana se reduzirá ao número compatível com os recursos naturais.
Se ao invés de adotarmos práticas sustentáveis de produção seguirmos depredando os recursos naturais como se fossem infinitos, o homem corre o risco de desaparecer e desaparecido propiciará a regeneração do planeta. Ou nos adequamos ou desapareceremos.
Se não preservarmos e não começarmos a investir em métodos mais sustentáveis de produção, nós desapareceremos com num filme de ficção científica, desses em que uma invasão alienígena destrói a vida humana sobre a face da terra. Só que no filme da vida real, o alienígena inimigo somos nós mesmos e nossas práticas predatórias.
A solução não reside em não produzir ou produzir com técnicas que não seriam capazes de alimentar mais que 50% da população mundial, pois o efeito final seria o mesmo. A solução reside em adotarmos sustentabilidade nas nossas práticas de produção a partir de ontem, ou o planeta doente se curará eliminando a causa de seus males - o homem.
Na avicultura temos vários índices - postura, eclosão, conversão, etc. Está na hora de despertarmos para incorporar índices de sustentabilidade à nossa produção. Por onde começar? Pela conscientização da importância da sustentabilidade, lembrando-nos da frase de que não somos proprietários da terra que herdamos de nossos pais, mas simples guardiões da terra das futuras gerações.
O mais raro e precioso dos bens não é o petróleo, conforme provado pelo álcool, biodiesel, biomassa, energia eólica, solar, etc. O mais raro é água doce, do qual o Brasil detém as maiores reservas mundiais. Usamos água em nossa avicultura como se fosse nada. Como hoje há guerras pelo petróleo, num futuro não muito distante haverá guerras por água e não precisa usar muita imaginação para saber onde elas ocorrerão.
A conscientização e busca de informações sobre sustentabilidade devem começar já, pois não nos resta muito tempo. Mas não precisamos ser doutores em sustentabilidade para iniciar práticas sustentáveis hoje mesmo e água é um bom começo. Sabe quantos litros de água usa para produzir um lote de frangos na sua granja? Ou para produzir cada kg de frango abatido ou dúzia de ovos?
Se a resposta for não, levante esse dado vital. Se a resposta for sim, ótimo, pois já terá um parâmetro a partir do qual buscará redução. Como? Da mesma forma como melhoramos genética, manejo, nutrição, redução de mortalidade, aumento de produtividade - via preocupação, dedicação, priorização, ciência, tecnologia e investimentos.
Investimentos? Sim, investimentos, tão ou mais importantes que um novo caminhão, um novo silo, um novo comedor automático, uma nova máquina para o abatedouro, uma nova linha de cozidos, etc. Esses investimentos melhoram seu trabalho, seu rendimento ou sua produção. Os investimentos em sustentabilidade, começando pela economia de água, garantirão que seus filhos e os filhos de seus filhos tenham mais do que trabalho, rendimento ou produção - tenham vida.
Mãos à obra. Estamos atrasados, mas não é tarde demais.
Referências:
http://www.populationaction.org/
http://www.faostat.org
http://www.akatu.net
Clay, Jason W. - "World Agriculture and the environment: a commodity-by-commodity guide to impacts and practices", Island Press, 2004