Nos últimos anos temos assistido a que grupos brasileiros do setor protéico animal expandam suas operações para vários países do mundo. Este movimento tem sido liderado por empresas do setor bovino que, ao mesmo tempo em que estabelecem operações nos principais centros mundiais de carne bovina, diversificam suas ações empresariais para incluir aves e suínos.
A lógica de estar presente em todas as principais carnes é fácil de entender examinando‐se os dados de 1950 a 2010, onde se verifica que a carne bovina experimentou o menor crescimento entre as três principais, ainda que como todas tenham ficado acima do crescimento demográfico.
Nas projeções futuras o quadro não é diferente, podendo até se tornar pior que os números aqui apresentados.
Consolidando esses dados num gráfico verificamos que a carne bovina, que liderou o consumo mundial até meados da década de 1970, vai inexoravelmente perdendo participação entre as carnes mais consumidas, devendo em 2050 representar 20,6% do total.
A razão desse decréscimo reside na progressiva escassez de recursos naturais finitos, principalmente terra arável e água. Esses recursos finitos são disputados para produção de alimentos específicos, combustíveis e proteínas animais, o famoso “feed, food, fuel”. A espécie bovina com conversão de 5,5 kgi, 15.977ii litros de água por kg de carne e 18 meses para alcançar peso de abate dificilmente poderá competir com as espécies mais eficientes, mormente aves (1,7kg IC, 2.828 litros de água e 38 dias para alcançar peso de abate) e aqüicultura. Significa então que a carne bovina está condenada ao desaparecimento. Evidentemente que não, mas fora dos países nos quais encontram os rebanhos no quintal de casa, a carne bovina se tornará item de luxo. Dentro de 30 anos, assegure‐se de ter uma garantia bancária ou cartão de crédito platino antes de pedir um “entrecôte” , “bife de chorizo”, “NY strip”, “filet” ou “picanha”. E ficaremos felicíssimos com processados de carne bovina, caros, mas acessíveis.
E nesse futuro, gado a campo só será visto em documentários do History Channel. É evidente que os grandes grupos de carne bovina teriam que estender sua ação às proteínas de ciclo curto, como aves e suínos. De assim não fazerem teriam seu universo de ação empresarial restrito a uma espécie de mercado progressivamente limitado. Acredito que há reside uma das motivações para que grupos com histórico de pecuária bovina e produção de carne vermelha ampliem sua atividade para incluir as “carnes do futuro” num primeiro momento e num segundo “as proteínas animais do futuro”, agregando às aves, aqüicultura e lácteos. Esses mesmos grupos também agitaram o mercado com a aquisição de várias empresas no mundo, numa expansão de rapidez surpreendente.
Já havia grupos pecuaristas brasileiros com tradição de produção em outros países, seja nos vizinhos do MERCOSUL histórico, seja na Austrália, mas a simultaneidade de diversificar em espécies e marcar presença nos mais importantes mercados mundiais provoca espanto e indagações até este momento. É também interessante notar que os principais grupos brasileiros de aves e suínos, mesmo com uma histórica presença no comércio internacional, foram até hoje muito discretos na internacionalização de suas operações, sobretudo as produtivas.
Qual a motivação deste processo de internacionalização de operações? Acho que esse processo decorre de alguns fatores:
a) dieta humana migra para uma maior ingestão de produtos de origem animal na medida em que a renda se expande, fato marcante principalmente nos Países em Desenvolvimento;
b) produtos de origem animal exigem muito mais recursos naturais que os produtos de origem vegetal e muitos desses mercados em expansão dos Países em Desenvolvimento não dispõem dos recursos de terra arável, condições climáticas favoráveis, fotossíntese e água. Água é o elemento decisivo na medida em que produtos de origem animal requerem de três a quatro vezes mais água do que os de origem vegetal;
c) o Brasil se tornou nos últimos 15 anos uma potência agropecuária que rivaliza com as principais do mundo e, ao contrário destas, dispõe de recursos naturais para seguir expandindo suas produções. O Brasil lidera as exportações mundiais de carne bovina (≈23% do total mundial) e de aves (≈36%) e, mesmo sofrendo restrições sanitárias, responde por ≈17% das exportações de carnes suínas. Em exportações de carnes o Brasil é a principal potência mundial, com excepcionais perspectivas futuras.
Diante desta realidade e das perspectivas, buscar globalizar suas operações faz todo o sentido para as principais empresas brasileiras do setor de carnes. O exemplo de dois grupos de origem na carne bovina terá que necessariamente ser seguido por outros grupos relevantes que atuam no setor das demais carnes, sob pena de arriscarem a liderança que exercem no mercado mundial de carnes de aves e a importância no de carne suína. O modelo exportador não é mais suficiente para que uma empresa pretenda ter ação global e se esta não globalizar suas ações deverá se contentar com a condição de empresa internacional, produzindo em um país e enviando seus produtos para o mundo.
A sustentabilidade de tal empresa poderá ceder diante de protecionismo, episódios sanitários, deficiências de infraestrutura, carga fiscal e burocrática sufocantes, câmbio manipulado, ataques de populismo tão ao gosto recidivista latino‐americano, para enumerar uns poucos dos muitos riscos. Uma empresa só se torna global se estiver presente pelo menos entre os principais players mundiais. Há 204 países e territórios que figuram nas estatísticas da FAOSTAT que habitualmente uso em meus estudos. Seria então esta a proposição de uma tarefa hercúlea? Não na medida em que o segmento de carnes é extremamente concentrado, sendo habitual que quinze países, distintos segundo as espécies, concentrem > 75% da produção, importação, exportação e consumo de carnes, conforme podemos apreciar no quadro a seguir.
Não significa dizer que a empresa tenha que estar presente em todos os 15 países, mas sim que sua estratégia deve contemplá‐los de forma a que possa produzir ou processar em alguns deles, importar e distribuir em outros, ter plataformas exportadoras naqueles onde for conveniente e construir uma presença junto aos principais mercados consumidores. Tenho afirmado que uma empresa global tem que necessariamente ser empresa local nos 15 x 80%. Reparem nos gráficos de Pareto anexados a este artigo que 15 países quase sempre alcançam 80% da produção, das exportações, das importações e do consumo das principais proteínas animais. Se as empresas globais não estiverem como atores nesses mercados passarão a ser meras empresas internacionais, produzindo aqui e ali para vender ali, o que fragiliza sua sustentabilidade a largo prazo. Há convergências de players nas principais espécies e em seus segmentos, o que facilitará a construção da estratégia para que a presença da empresa seja global. Para que seja global a empresa tem que se tornar local.
É essencial que a empresa global participe da realidade de cada mercado local onde atuar, de forma engajada e comprometida com as vicissitudes de cada mercado local. A ação global da empresa permitirá que ela dilua os riscos e as oscilações de cada um dos mercados onde atuar, tornando‐a localmente mais forte que seus competidores e usando essas mesmas vicissitudes locais para melhor competir internacionalmente. A empresa “glocal” prevalecerá sobre a empresa internacional e conviverá com seus pares locais.
Não há mais espaço para o modelo Companhia das Índias, nem para o modelo internacional, onde me contento a partir da competitividade que usufruo em certo país para exportar para inúmeros países do mundo. Pretender ser global a partir de uma única base nacional é menos sustentável do que construir essa globalidade a partir do somatório de eficiências locais, que é o que preconizo para a construção do modelo de empresa “glocal”. Há vários exemplos de empresas glocais, e para ficar na zona de conforto citaria as grandes glocais de grãos. O Brasil é um dos três maiores produtores de grãos do mundo e se verificarmos as cinco maiores empresas que atuam no país nesse segmento veremos que nenhuma delas é brasileira nata. Significa então que estas empresas não estariam comprometidas e engajadas com esse segmento no Brasil? Acho que até cegos bem intencionados ou pessoas de excelente visão cegadas por ideologia conseguem ver que são tão locais quanto as aqui nascidas.
As duas empresas originárias do segmento bovino, nascidas no Brasil, possuem operações no Brasil, Argentina, Austrália, EUA, Uruguai, Paraguai, Chile, México, China, Rússia e na União Européia, aos quais se agregam centros de distribuição no Egito, Argélia, Congo, R.D. do Congo, Angola, Taiwan, Coréia do Sul e Japão e sem contar os escritórios comerciais em dezenas de países. Tornaram‐se ”glocais”, destino que terá que ser seguido pelo grupo resultante da fusão dos dois maiores produtores e processadores de alimentos protéico‐animais, sem o que ficará restrita a uma posição de empresa internacional. Esses grupos diversificam suas ações para se tornarem empresas de alimentos glocais, e suas presenças locais aportam ao grupo global a tecnologia, soluções, inventividade, criatividade, experiência e exemplos de êxito local, intercambiáveis e adaptáveis a favor do grupo global. Aí reside a força da empresa “glocal” e da “glocalidade”.
A presença local pode ser alcançada através da aquisição de empresas existentes, investimentos em projetos a partir do zero e joint‐ventures com grupos locais. A existência desses grupos “glocais” não significa que os as empresas locais estão condenadas, pois o yin e yang da gestão empresarial moderna implicam em cooperar e competir, naquilo que em artigos e conferencias chamei de “caçar em bando e defender‐se em bando”. A “glocalidade” é garantia de êxito e sobrevivência das empresas “glocais”?
Costumo dizer que quem busca garantia deve comprar um carro ou um eletrodoméstico produzido por um grupo glocal. Andam oferecendo garantias de 3 a 5 anos ou até a próxima Copa, quando esperamos que a seleção brasileira volte a jogar futebol. Não há garantias de êxito no mundo empresarial, mas há fórmulas de minimizar os riscos e maximizar as probabilidades de sobrevivência:
a. ter estratégia para os próximos dez anos, sem descurar de buscar resultados no ano atual;
b. entender que o objetivo de uma organização é antes de tudo sobreviver;
c. saber que os logros e feitos que nos trouxeram até hoje não são garantia de êxitos amanhã. Portanto, permeabilidade a novas idéias, a novos conceitos, ao “sei que não sei”;
d. nada substitui administração eficiente, decisões baseadas em fatos e dados, PDCA, gente motivada e engajada;
e. evite o Complexo de Luis XIV;
f. inovação, atualização e alianças com elos da cadeia. Não dá mais para brigar sozinho. Há que ter aliados na trincheira.
Poderíamos listar outras fórmulas de sucesso, mas com estas, trabalho, visão, estratégia, controle e permeabilidade a idéias devem bastar.