INTRODUÇÃO
O bem-estar animal, juntamente com as questões ambientais, é um dos temas mais debatidos da agricultura do século XXI (GARNETT et al., 2013). Avanços significativos no reconhecimento científico e legal da senciência e bem-estar animal foram alcançados nas últimas décadas e norteiam esta discussão. A Office International des Epizooties (OIE) engloba os elementos básicos que constituem o bem-estar animal em seu Código Sanitário dos Animais Terrestres, afirmando que “um animal experimenta bom bem-estar se estiver saudável, confortável, bem nutrido, seguro, não sofrer de estados desagradáveis, como dor, medo e angústia, e ser capaz de expressar comportamentos que são importantes para o seu estado físico e mental” (OIE, 2019; ALBERNAZ-GONÇALVES et al., 2022). No entanto, os sistemas de produção intensiva de suínos, em geral, falham em muitos desses objetivos e oferecem poucas condições para que os animais experimentem estados afetivos positivos e de interação com sua própria espécie (ALBERNAZ-GONÇALVES et al., 2022).
DESENVOLVIMENTO
Bem-estar animal no mundo
Ao considerar o bem-estar animal, além da saúde física, o bem-estar psicológico dos animais também deve ser considerado. Bem-estar como uma palavra, define o estado em que uma pessoa ou um animal vive saudável, feliz e seguro (KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013). Existem várias definições de bem-estar animal, Hughes (1976) define como: um estado de completa saúde mental e física, onde o animal está em harmonia com seu ambiente. Carpenter (1980) define como: vivência ou adaptação dos animais sem sofrimento aos ambientes proporcionados pelo homem. Ao falar em bem-estar animal, não bastaria falar apenas das condições ambientais. Alguns animais podem enfrentar problemas de bem-estar mesmo estando em boas condições ambientais (KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013).
Com base nessas definições, o bem-estar animal pode ser definido como o fornecimento de condições ambientais nas quais os animais podem exibir todos os seus comportamentos inatos, de maneira análoga ao comportamento exibido na natureza. A importância do bem- -estar animal muda de país para país, pois diferem em religião, desenvolvimento econômico, educação e percepção. Não existe uma regulamentação de bem-estar animal que possa ser aplicada a todos os países (KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013).
As discussões sobre o tema dos direitos dos animais começaram na década de 1960, e em 15 de outubro de 1978 foi publicada a “Declaração Universal dos Direitos dos Animais”. Este texto foi reorganizado em 1989 pela Associação dos Direitos dos Animais e em 1990, foi apresentado ao Diretor-Geral da United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO) e no mesmo ano foi divulgado ao público (KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013; DIAS et al., 2015).
Na Declaração Universal dos Direitos dos Animais (1978) é dado o seguinte preâmbulo: considerando que todo o animal possui direitos; considerando que o desconhecimento e o desprezo destes direitos têm levado e continuam a levar o homem a cometer crimes contra os animais e contra a natureza; considerando que o reconhecimento pela espécie humana do direito à existência das outras espécies animais constitui o fundamento da coexistência das outras espécies no mundo; considerando que os genocídios são perpetrados pelo homem e há o perigo de continuar a perpetrar outros; considerando que o respeito dos homens pelos animais está ligado ao respeito dos homens pelo seu semelhante; considerando que a educação deve ensinar desde a infância a observar, a compreender, a respeitar e a amar os animais (KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013).
A Declaração dos Direitos dos Animais (1978), é composta por 14 artigos, que afirmam resumidamente que os animais têm o direito de existir, de serem respeitados, de merecerem bom tratamento e proteção do homem e, em hipótese alguma, serem abandonados ou mortos injustificadamente.
A seguinte declaração no Tratado de Amsterdã sobre o bem-estar animal foi acordada pelos estados membros da União Européia em junho de 1997, foi oficialmente assinada em 2 de outubro de 1997 e entrou em vigor em primeiro de maio de 1999.
“Desejando assegurar maior proteção e respeito pelo bem-estar dos animais como seres sencientes, concordamos com a seguinte disposição, que será anexada ao Tratado que institui a Comunidade Européia, na formulação e implementação da agricultura, transporte, mercado interno e políticas de investigação, a Comunidade e os Estados-Membros terão plenamente em conta os requisitos de bem-estar dos animais, respeitando simultaneamente as disposições legislativas ou administrativas e os costumes dos Estados-Membros relativos, em particular, aos ritos religiosos, tradições culturais e património regional” (Tratado de Amsterdã, 1997).
Segundo Koknaroglu & Akunal (2013), na Europa, o bem-estar animal é controlado em três etapas. São elencadas as condições de criação, processo de transporte e pré-abate, durante as práticas de abate. O Conselho Europeu de Bem-Estar de Animais de Fazenda adotou regras relativas a cinco liberdades de animais que definem estados ideais em vez de padrões para bem-estar aceitável, incluem: liberdade de fome e sede; desconforto; dor, lesões e prevenção de doenças ou tratamento rápido; para expressar o comportamento normal - espaço e instalações adequados, companhia da própria espécie do animal; medo e angústia - condições e tratamento que evitam sofrimentos mentais.
Bem-estar animal e medição
De acordo com Selye (1955), Siegel (1985) e Santos (2005) fatores como trauma, ruído, calor, umidade, fatores ambientais e restrição de alimentação e água causam estresse nos animais. Embora os fatores causadores de estresse causem uma variedade de síndromes, a intensidade e a apresentação dessas síndromes diferem entre os indivíduos. Diante de uma situação que causa estresse, os animais respondem fisiologicamente a ela. Nesse caso, as mudanças que ocorrem são divididas em três períodos, como alarme, resistência e exaustão.
Quando o corpo enfrenta um fator de estresse, o sistema hipotálamo-hipófise-adrenal é estimulado e isso faz com que o hipotálamo libere o fator de liberação de corticotrofina que causa a liberação do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) (SANTOS, 2005). Sob a influência do ACTH, a liberação de cortisol pela glândula adrenal aumenta. Como resultado da liberação de cortisol, ocorre a glicogenólise (degradação do glicogênio), aumento da pressão arterial, atividade mental e ácidos graxos são mobilizados do tecido adiposo. O sistema simpático autônomo estimulado com fator de estresse induz a liberação de epinefrina da medula da glândula adrenal. Embora o aumento da epinefrina tenha efeitos semelhantes aos do cortisol, ele aumenta a temperatura corporal, a frequência respiratória (BALCIOĞLU, 2005). Os eventos fisiológicos mencionados acima ocorrem durante o período de alarme e resistência e podem acontecer em curta ou longa duração. Devido aos efeitos desses dois hormônios, os animais podem lidar com o estresse. No caso de um estressor prolongado, o mecanismo de defesa do corpo torna-se insuficiente e ocorre um período de exaustão (SANTOS, 2005; KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013).
Devido à longa duração do estado de estresse, os efeitos prolongados dos fatores de estresse iniciam o período de exaustão. No período de exaustão ocorrem diminuição do desempenho, suscetibilidade a doenças e retardo no crescimento (KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013). A fim de prevenir alterações fisiológicas e mortes que podem ocorrer devido a fatores de estresse prolongado, deve-se dar importância ao bem-estar animal. Medir o estresse e a angústia em animais tem sido um desafio e a maioria dos métodos de medição do estresse depende do sistema endócrino, comportamental, nervoso autônomo e pontos finais imunológicos (SANTOS, 2005; KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013).
No entanto, nenhuma dessas medidas em si é adequada para determinar o estresse. O aumento do nível de cortisol circulante está associado ao estresse e, sob condições experimentais cuidadosamente controladas, pode ser um indicador confiável de estresse (MOBERG, 2000; KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013). No entanto, isso pode ser problemático quando o estresse é avaliado fora do ambiente de laboratório (MOBERG, 2000). A avaliação do nível de cortisol requer amostragem de sangue que é invasiva e requer captura, manuseio e sangramento do animal que causa um rápido aumento nas concentrações sanguíneas de glicocorticoides em 3 minutos (SHERIFF et al., 2010). No entanto, o sangramento de animais soltos pode não ser possível em 3 minutos (ROMERO & ROMERO, 2002). Assim, um método alternativo para avaliar o nível de glicocorticóides nas fezes foi desenvolvido por Sheriff et al. (2010) sugerindo que as medidas fecais e plasmáticas da fisiologia do estresse de um animal são concordantes.
Transporte e bem-estar animal
O transporte de animais quando feito de forma incorreta afeta o bem-estar das espécies, principalmente aquelas destinadas a produção de alimentos (LUDTKE et al., 2012). Durante a transferência de animais, um ou mais fatores afetam o bem-estar dos animais e trazem prejuízos ao seu organismo. Os principais problemas enfrentados durante o transporte de animais, são: custo, calor, distância, risco potencial de propagação de doenças, má interação humano-animal, transporte de animais em espaços inadequados como fome e sede, lesões, fraturas, morte e perda de rendimento da carcaça (LUDTKE et al., 2012; KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013; ARAÚJO et al., 2022).
A União Europeia publicou em 2004, o Regulamento (CE) nº 1/2005 relativo à proteção dos animais durante o transporte e operações afins que entrou em vigor em 2005, e define os padrões de transporte de animais por transporte terrestre, marítimo e ferroviário. Como resultado da implementação dos padrões, as condições que afetam adversamente o bem- -estar animal são eliminadas (KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013). Os regulamentos relativos às etapas de embarque e desembarque de animais, de veículos automotores, condições de higiene, duração da viagem, tempos de descanso durante o transporte, fornecimento de ração e água são fornecidos em diretrizes para atender ao requisito estabelecidos para o transporte de animais, pois nenhum animal deve ser transportado a menos que esteja apto para a viagem pretendida. Além disso, todos os animais devem ser transportados em condições que garantem não lhes causarem dor, lesões ou sofrimento desnecessários (KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013).
De maneira geral Koknaroglu & Akunal (2013) trazem que, as condições para um bom transporte de animais são as seguintes:
1) Os animais devem ser capazes de andar sozinhos;
2) Não deve haver nenhuma ferida aberta em seus corpos;
3) Independente da espécie e raça animais com 90% do tempo de gestação não devem ser transportados e animais que pariram com menos de uma semana não devem ser transportados;
4) Para transporte de animais recém-nascidos deve-se aguardar a cicatrização completa do cordão umbilical;
5) Cordeiros com menos de uma semana, bezerros com menos de 10 dias e leitões com menos de três semanas devem ser transportados a uma distância máxima de 100 km;
6) Cães e gatos com menos de 8 semanas não devem ser transportados sem a presença das mães.
Quando os animais são transportados, eles tendem a tolerar melhor o clima frio do que o clima quente. Especialmente quando não há circulação de ar suficiente durante o transporte, o aumento da umidade junto com o calor causa variações na temperatura e os animais podem sofrer estresse por calor. Desse modo, o estresse calórico pode causar efeitos adversos nas espécies transportadas, tais como: inquietação, aumento da sudorese, frequência respiratória, temperatura retal e diminuição das características reprodutivas (LUDTKE et al., 2012; KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013, ALVES et al., 2016). Quando os animais são transportados, além do calor, o barulho e a movimentação brusca podem causar excitação, susto e irritabilidade (KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013; ALVES et al., 2016).
Como o estresse afeta a qualidade da carcaça de suínos?
O aumento da atividade metabólica devido ao estresse causa uma entrega inadequada de nutrientes e oxigênio aos músculos pelo sangue. Assim, como resultado, o glicogênio armazenado é hidrolisado. Consequentemente, uma vez que o glicogênio necessário para as mudanças post mortem é esgotado, uma carcaça de boa qualidade não pode ser obtida e o rigor alcalino se forma (ARSLAN, 2012; ALVES et al., 2016). Como resultado da formação de rigor alcalino, forma-se carne (DFD) escura, firme e seca (dark, firm, dry) que possui pH de 6. A carne DFD (figura 1) é mais frequentemente observada em bovinos e, comparada à carne com pH de 5,4 a 5,8, o produto tem uma vida-de-prateleira muito mais curta pois, devido ao elevado pH, as proteínas miofibrilares apresentam alta capacidade de retenção de água, sendo mais adequada para a proliferação de patógenos (RÜBENSAM, 2000; PALMA, 2017; SOUZA & RIBEIRO, 2021; ARAÚJO et al,. 2022).
Quando animais como suínos e aves são expostos a condições de estresse, a glicólise acelera e o pH cai rapidamente. Com o efeito de fatores de estresse, o pH cai para 5,3 em 1 a 1,5 horas e, como resultado, forma-se um rigor ácido. Esses tipos de carne são chamados de carne (PSE) exsudativa pálida e macia (pale, soft, exudative) (figura 1). Devido à rápida queda do pH no músculo e no momento do abate a temperatura do músculo está próxima da temperatura corporal, alguns filamentos (miosina) desnaturam (DRIESSEN & GEERS, 2000; RÜBENSAM, 2000; KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013; PALMA, 2017; SOUZA & RIBEIRO, 2021; ARAÚJO et al., 2022).
Figura 1. Impacto do estresse na conversão do músculo em carne.
A deterioração na estrutura da miosina causa vazamento de água da carne PSE e está torna-se macia. A água vazada na carne reflete a luz e, portanto, a carne parece pálida. Embora o pH dessa carne seja baixo, à alta concentração de água propícia o crescimento microbiano.
Segundo Grandin (2000) pesquisas sugerem que, se promovermos bem-estar animal dentro da produção e se melhorarmos os métodos de abate com práticas de bem-estar animal, podemos diminuir o problema de PSE em 10%. Como resultado, uma vez que as medidas pré-abate são mais fáceis de controlar do que as reações bioquímicas pós-abate, antes do abate deve-se dar atenção ao bem-estar dos animais. Quando não for possível eliminar as condições de estresse que causam PSE e DFD que afetam a qualidade da carne e, posteriormente, o valor econômico da mesma, os animais devem descansar antes do abate e não devem ser submetidos a estresse durante o abate (KOKNAROGLU & AKUNAL, 2013).
Criação alternativa: ausência de fome e sede
Na natureza, os suínos são ativos durante o dia e gastam 75% de seu tempo ativo em atividades de forrageamento, incluindo vasculhar, pastar e explorar com o focinho (D’EATH & TURNER, 2009; KITTAWORNRAT & ZIMMERMAN, 2011). Nas granjas de criação, a distribuição do tempo é diferente e os suínos passam menos tempo procurando comida. A ração é distribuída aos animais em diferentes apresentações (farinha, pellets, ração líquida), em quantidades ilimitadas ou em quantidades limitadas em horários específicos determinados pelo produtor. Existem poucas diferenças na forma como a alimentação é distribuída na produção confinada e livre de gaiolas; as causas de estresse devido a deficiências alimentares são as mesmas, ou seja, comprimento insuficiente do comedouro ou quantidade insuficiente de ração distribuída aos animais (LAWRENCE & TERLOUW, 1993). No entanto, para um desempenho de crescimento equivalente, os animais criados ao ar livre consomem em média mais ração do que os animais criados em ambientes fechados, devido à maior atividade e maior gasto de energia devido a temperaturas ambientes mais baixas, principalmente no inverno (DEMO et al., 1995; EDWARDS, 2005; VELAZCO et al., 2013). Para a mesma quantidade de ração, as necessidades de um suíno criado ao ar livre podem não ser atendidas e podem gerar quadros de estresses fisiológicos e comportamentais (DELSART et al., 2020).
No entanto, a ingestão de forragem pelos suínos criados fora de gaiolas é totalmente dependente da qualidade do material forrageiro e de sua palatabilidade (RACHUONYO et al., 2005). No geral, a palatabilidade da ração é importante para o consumo e para a capacidade do animal em satisfazer suas necessidades. Os suínos tendem a optar pela ração peletizada, por serem análogas as partículas ingeridas na natureza. Rações com alta concentração de contaminantes (por exemplo, um alto nível de unidades formadoras de colônias de leveduras), micotoxinas (especialmente vomitoxina) ou níveis inadequados de aminoácidos específicos (por exemplo, triptofano) pode causar uma diminuição da ingestão de alimentos pelos suínos. Os seguintes parâmetros requerem atenção em sistemas alternativos de criação, como o sistema de suínos criados ao ar livre:
I. conservação da ração, principalmente quando distribuída ao ar livre;
II. o balanço de aminoácidos, principalmente em fazendas orgânicas onde não é permitida a incorporação de aminoácidos sintéticos;
III.ou a presença de micotoxinas que parece ser maior no trigo orgânico do que no trigo convencional (DELSART et al., 2020).
A ausência de sede é assegurada pelo fornecimento de uma quantidade de água que atenda às necessidades dos animais. Essas necessidades variam de acordo com o estágio fisiológico, mas também de acordo com as condições ambientais (DELSART et al., 2020). Apenas o acesso permanente à água potável pode atender às necessidades fisiológicas dos animais em todos os momentos de sua vida. A disponibilidade de água potável pode ser um problema, especialmente em sistemas extensivos. No sistema onde os animais são criados ao ar livre, os bebedouros são frequentemente acessíveis a aves selvagens que podem contaminar a água de bebida. O acesso a água de má qualidade pode causar diminuição no consumo e pode induzir problemas de saúde nos animais (MARTINEAU, 2010). O manejo dos bebedouros com limpeza diária é de grande importância, principalmente em criação de suínos ao ar livre. O controle da temperatura da água também pode ser um desafio. Uma temperatura elevada pode causar uma baixa ingestão de água, como ocorre em suínos alojados em confinamentos convencionais (BANHAZI & RUTLEY, 2013). Embora a literatura científica sobre o assunto seja escassa, experiências de autores sugerem que, em sistemas ao ar livre, as tubulações de abastecimento de água devem ser preferencialmente enterradas para limitar a ação do sol no encanamento e impedir que ocorra proliferação bacteriana e um aumento significativo da temperatura da água, o que reduz o consumo de água pelos animais (DELSART & HOULBERT, 2012). Além disso, canos desprotegidos e não enterrados são acessíveis aos animais, que podem destruí-los, principalmente devido a característica de curiosidade intrínseca a espécie (DELSART et al., 2020).
Criação alternativa: Ausência de desconforto
A segunda liberdade é a ausência de desconforto, que é garantida por um ambiente adequado, com espaço suficiente para os animais se movimentarem livremente, áreas de descanso confortáveis e sem correntes de ar, luz suficiente para que os animais tenham a percepção do dia e da noite e o conforto térmico necessário. A cama feita de palha é uma opção de alívio do desconforto e tem propriedades semelhantes ao tipo de substrato que um suíno encontraria na natureza, atuando como uma almofada e reduzindo lesões nos animais (AREY, 1993). Vários estudos demonstraram que o risco de bursite (um saco cheio de líquido rodeado por fibroblastos que se forma no tecido conjuntivo subcutâneo como resultado da pressão exercida na pele sobre uma proeminência óssea), é significativamente menor em sistema alternativo com acesso ao ar livre ou na palha do que em granjas de confinamento convencional (MOUTTOTOU et al., 1998). A gravidade da bursite está associada a ambientes duros e desconfortáveis que aumentam a pressão nas articulações. A taxa e a gravidade da bursite tendem a diminuir durante a fase de engorda em animais com acesso a cama feita de palha ou ao ar livre, mas aumentam quando os animais são engordados em pisos de ripas (DELSART et al., 2020).
Segundo Delsart et al. (2020), um estudo uruguaio apresentou que, os animais em sistemas ao ar livre são em geral mais ativos e apresentam um padrão de comportamento diário com dois picos de atividade – de manhã e à tarde – maior em comparação com os suínos confinados, que são mais sedentários e apresentam um padrão de comportamento mais estável ao longo do dia.
Para suínos ao ar livre, o principal desafio é mantê-los limpos e secos em condições de clima úmido. O tipo e o manejo das baias de habitação devem ser adaptados a serem confortáveis e grandes o suficiente para acomodar os animais. Nos piquetes de parição, existe um efeito sazonal na mortalidade de leitões ao ar livre relacionado com a gestão do conforto durante o parto e a capacidade da fêmea de preparar o ninho corretamente na baia. A baixa densidade de cobertura do solo no ambiente, acompanhada pela presença permanente de lama, aumenta a umidade e o desconforto nas baias. Os leitões são muito sensíveis ao frio e às correntes de ar desde o nascimento. As baixas temperaturas ambientais aumentam a proximidade dos leitões à mãe e favorecem a mortalidade por esmagamento. O esmagamento pode ser reduzido por abundante cobertura morta nas baias. A cama seca fornece um ninho e isolamento térmico, promovendo a sobrevivência dos leitões (DELSART et al., 2020).
Assim como na ausência de fome e sede, indicadores podem ser usados para avaliar a presença de desconforto (DELSART et al., 2020). Determinar as taxas de aglomeração, tremores e até respiração ofegante pode ser interessante, mas esses indicadores dependem de outros fatores além do tipo de criação em si, como condições climáticas no dia da observação ou densidade animal (TEMPLE et al., 2012). A presença de suínos sujos é um indicador de um compartimento sujo, assim, a limpeza dos suínos pode oferecer a possibilidade de avaliar a ausência de desconforto (DELSART et al., 2020). Por exemplo, uma vez que a temperatura crítica superior foi atingida, os animais criados com camas feitas de palha tendem a esfriar chafurdando em seus próprios excrementos (TEMPLE et al., 2012). No entanto, avaliar a limpeza do animal não é tão simples. DIPPEL et al. (2014) apontaram uma grande variabilidade neste critério, ligada a observadores que não diferenciam entre lama e fezes.
Criação alternativa: Ausência de dor, lesão e doença
Os leitões mantidos ao ar livre mostram um comportamento menos agonístico em relação a outros leitões do que os leitões mantidos confinados, antes ou depois do desmame (HÖTZEL et al., 2004). Em um estudo com 1.928 granjas produtoras de suínos no Reino Unido, houve significativamente menos lesões graves em suínos em crescimento mantidos ao ar livre em comparação com suínos confinados (PANDOLFI et al., 2017).
Observações equivalentes foram encontradas para mordidas de cauda e lesões de canibalismo em animais criados em sistema livre de gaiolas. A mordedura de cauda é um problema comportamental com causas multifatoriais, incluindo superlotação, doença, problemas de alimentação (por exemplo, competição por ração e/ou ingestão inadequada de ração, baixo teor de fibras, deficiência ou desequilíbrio de proteínas, desequilíbrios minerais), mas também má ventilação ou temperaturas desconfortáveis (FRASER, 1987; SCHRØDER-PETERSEN & SIMONSEN, 2001). Suínos mantidos em galpões com acesso ao ar livre provavelmente têm mais dificuldades em controlar seu ambiente térmico ao passar de um sistema protegido para um sistema ao ar livre, o que pode explicar o maior comportamento agonístico nesse tipo de criação do que em galpões totalmente confinados (DELSART et al., 2020).
Lesões e dores podem ser induzidos aos animais pelo próprio sistema de produção, como por exemplo a castração cirúrgica dos suínos machos, que ainda é muito comum e geralmente é feita sem controle total da dor. Os leitões machos são castrados para limitar os odores sexuais na carne e evitar comportamentos indesejáveis, como sobreposição.
Embora a castração cirúrgica sem anestesia seja atualmente permitida até os 7 de idade na Europa, no Brasil a partir de 1 de janeiro de 2030 as granjas deverão utilizar de analgesia e anestesia, em toda e qualquer castração cirúrgica, independentemente da idade do animal (DELSART et al., 2020; INSTRUÇÃO NORMATIVA 113, 2020).
O corte de dentes é raro na produção de suínos orgânica e ao ar livre. Os objetivos principais do manejo é limitar as lesões nos tetos das matrizes e as lesões cutâneas nos leitões, especialmente na cabeça (BROWN et al., 1996). De acordo Delsart et al. (2020) um estudo trouxe que, a ausência de corte de dentes em leitões criados ao ar livre não tem impacto nos úberes das fêmeas lactantes. No entanto, na ausência de corte de dentes, há mais danos na pele dos leitões, mas sem afetar a sobrevivência, saúde ou ganho de peso dos leitões (BROWN et al., 1996). Por outro lado, a colocação de argola no focinho de animais criados ao ar livre é uma prática secular ainda hoje utilizada. O comportamento ativo de revolver a terra pelos suínos pode não ser tão desejável em determinados sistemas, mas esse comportamento torna-se doloroso com a existência de uma argola no focinho. Essa dor e a dor causada pelo anel, juntamente com a inibição da atividade de fuçar, são fatores que afetam o bem-estar desses porcos criados ao ar livre (VAN DER MHEEN & VERMEER, 2005; D’EATH & TURNER, 2009; PRUNIER, 2010).
Criação alternativa: Liberdade para expressar comportamento natural
Entre as críticas mais frequentes aos sistemas convencionais de produção, está a falta de liberdade para os animais expressarem seu comportamento natural. No entanto, a ausência de comportamento natural não implica necessariamente em sofrimento, mas pode ser uma fonte de frustração. A frustração pode ser expressa por níveis mais altos de hormônios do estresse, estereotipias, níveis anormais de agitação, comportamento de brincadeira reduzido, comportamento redirecionado, especialmente em relação a outros animais, e interações agonísticas aumentadas que podem levar ao canibalismo (LAWRENCE et al., 1994; GADE, 2002; D’EATH & TURNER, 2009).
Como mencionado anteriormente, na natureza, os suínos gastam 75% de seu tempo ativo explorando seu ambiente procurando, cheirando, mordendo e mastigando. Animais da espécie suína são animais gregários, ou seja, eles formam grupos estáveis com uma estrutura social hierárquica, limitando a agressão física severa entre os indivíduos (D’EATH & TURNER, 2009; STUDNITZ et al., 2007; KITTAWORNRAT & ZIMMERMAN, 2011).
Muitos estudos mostram que os animais são mais ativos em sistemas alternativos de produção do que em sistemas convencionais, particularmente para suínos criados ao ar livre ou em palha (GUY et al., 2002; MORRISON et al., 2007; BLUMETTO et al., 2013). Os animais no sistema livre estão mais frequentemente em pé, enquanto os suínos em confinamento são inativos na maioria das vezes (GUY et al., 2002; MORRISON et al., 2007; COURBOULAY et al., 2008; BLUMETTO et al., 2013).
Suínos criados ao ar livre tendem a apresentar comportamento menos agressivo do que suínos criados em ambientes fechados, com menos brigas e agressões mútuas (BLUMETTO et al., 2013). Eles passam mais tempo explorando, alimentando, andando e brincando, pois se beneficiam de amplo espaço e enriquecimento ambiental que lhes permite expressar seu comportamento natural em boas condições (JOHNSON et al., 2001; HÖTZEL et al., 2004; PRUNIER et al., 2014). Outro fator que pode induzir diferentes respostas comportamentais em leitões criados em sistemas livre de gaiolas é a oportunidade de interação social entre leitões de diferentes ninhadas durante a lactação (WEARY et al., 2002). Leitões criados em lactação em grupo são menos agressivos após serem misturados em grupos com leitões desconhecidos no desmame do que leitões criados em gaiolas de parto (VERDON et al., 2019). Suas mães também se comportam de maneira diferente ao ar livre: elas passam mais tempo em pé explorando o ambiente do que quando confinadas. Desse modo, matrizes e leitões ao ar livre mostram um repertório comportamental mais rico se comparados com animais em confinamento intensivo.
Ausência de medo, estresse e ansiedade
O trabalho sobre as relações humano-animal descreve uma aptidão dos suínos para desenvolver reações de medo e ansiedade quando se aproximam de humanos (HEMSWORTH, 2003). Este medo, pode ser avaliado especificamente pela extensão do comportamento de retraimento dos animais em contato com humanos. A domesticação de animais é igualmente importante no sistema de criação ao ar livre ou de confinamento e os agricultores devem ser treinados para manejar os animais adequadamente para reduzir a ansiedade (DELSART et al., 2020).
Os efeitos cumulativos de uma separação repentina da matriz, uma transição de uma dieta de leite para uma dieta seca, mistura de animais desconhecidos pela primeira vez e uma mudança abrupta do ambiente físico, fazem do desmame um período crítico de adaptação e estresse, impondo alta demandas por processos adaptativos. O desmame parece ser menos estressante para leitões ao ar livre do que em sistemas confinados (HÖTZEL et al., 2004). Em um estudo comparando o comportamento de leitões desmamados em 3 semanas de acordo com seu sistema de criação, os leitões passaram mais tempo cheirando a barriga e exibindo comportamentos agonísticos e orais-nasais direcionados aos companheiros do que leitões ao ar livre, no desmame e após o desmame (HÖTZEL et al., 2004).
Em condições naturais ou semi-naturais, o desmame do leitão é um processo progressivo caracterizado pela substituição do leite materno por outro alimento, iniciando-se por volta da 4ª semana de idade e terminando entre a 9ª e a 17ª semana de idade (JENSEN, 1986; BØE, 1991). A idade ao desmame influencia na adaptação dos leitões criados ao ar livre ao desmame. Aumentar a idade ao desmame de 3 para 4 semanas melhora o bem-estar dos leitões criados ao ar livre, reduzindo os comportamentos de angústia e melhorando o comportamento alimentar (HÖTZEL et al., 2010). Em granjas de criação orgânicas, os leitões são desmamados mais velhos, após 6 semanas de idade. Vários estudos mostram que o aumento da idade no desmame pode ter um impacto positivo nas respostas do cortisol salivar ou plasmático no desmame (MASON et al., 2003; VAN DER MEULEN et al., 2010). Num estudo com 160 leitões de 16 ninhadas, a resposta do cortisol plasmático no dia do desmame foi menor em leitões desmamados às 7 semanas em comparação com leitões desmamados às 4 semanas (VAN DER MEULEN et al., 2010).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os sistemas alternativos de produção apresentam vantagens e desvantagens em termos de bem-estar animal. O bem-estar está ligado principalmente às características do meio ambiente. Sistemas extensivos dão aos suínos a oportunidade de expressar um repertório comportamental mais amplo do que quando em confinamento, incluindo a maioria de seus comportamentos naturais, mas há dificuldade em controlar o ambiente, como o manejo alimentar, hídrico, térmico e predadores. A adoção de cama contribui também com a possibilidade de expressão de um etograma mais amplo e oferece conforto aos suínos, desde que a cama esteja saudável e seca. Sistemas alternativos, como a criação de suínos ao ar livre, sem gaiolas, com ambiente enriquecido, fornecem amplas soluções para controlar os pontos críticos do bem-estar animal, ao contrário dos sistemas intensivos de confinamento, onde os suínos têm mais dificuldade em expressar seu comportamento natural, mesmo através da adição de materiais de enriquecimento ou mesmo aumento da superfície por animal. Mesmo em sistemas de criação ao ar livre, deve-se oferecer os animais uma boa criação e um bom manejo, como forma de garantia das práticas bem-estar animal.
Publicado originalmente na revista eletrônica Editora Científica Digital. Research X - ISBN 978-65-5360-270-0 - Volume 10 - Ano 2023. Acesso disponível em: www.editoracientifica.com.br