INTRODUÇÃO
Os suínos ganham destaque em todo o mundo dentro da agropecuária, onde, na suinocultura há o maior enfoque para reprodução e consumo destes animais, tendo em vista que a carne suína é a mais consumida em todo o mundo, e o Brasil vem se consolidando como um dos maiores produtores globais dessa proteína¹. Todavia, este cenário vem sendo modificado com a domesticação da espécie (1), principalmente com a raça mini-pig, onde estes animais estão sendo inseridos como pets e assessorados na rotina clínica de pequenos animais.
A ovariohisterectomia (OH) destaca-se dentre os procedimentos cirúrgicos mais realizados na prática veterinária de animais de companhia, em cadelas e gatas (2). Tal técnica visa a remoção dos ovários, tubas uterinas e útero, resultando na esterilização das fêmeas (2). A principal abordagem realizada em pequenos animais, é pela linha mediana ventral, consistindo em uma celiotomia ventral da linha média, no terço médio entre o púbis e o umbigo. Os ovários são exteriorizados, e procede-se a ligadura dos pedículos ovarianos e uterino com auxílio de pinças hemostáticas e material de sutura absorvível, podendo ser empregadas a ligadura simples, dupla e tripla, seguida de incisões aproximadas às ligaduras e retirada dos órgãos (2).
Metodologias mais atuais são empregadas para a esterilização de cadelas, como descreve o estudo realizado por Sánchez-Margallo et al. (2015), os quais abordaram uma técnica de ovariohisterectomia realizada por meio de laparoscopia, com incisão única mediana pré-umbilical, a qual permite a utilização de quatro instrumentos através de um único canal. Pontua-se neste estudo, uma manipulação reduzida de vísceras intestinais, com consequente redução da dor pós-operatória, menor tempo cirúrgico, com melhor recuperação e reduzido tempo de hospitalização; devido à excelente observação dos órgãos em sua topografia anatômica, facilitando a execução das ligaduras e retirada dos órgãos.
Entretanto, em suínos a técnica de ovariectomia (OVE) é a mais utilizada, onde ocorre a retirada cirúrgica dos ovários por meio de uma incisão lateral na região do flanco paralombar, sendo que, a principal indicação é cessar a capacidade reprodutiva da fêmea (2). Salienta-se que esta técnica é menos invasiva e demanda menor tempo de recuperação para o animal, se comparada à OH, além do custo-benefício se tratando dos criadores. A desvantagem da OVE em relação a OH é de não prevenir o desenvolvimento de tumores uterinos (3), como vantagem, permite a observação da ferida cirúrgica à distância, muito útil no monitoramento do pós-operatório de animais ariscos, e reduz a evisceração dos órgãos abdominais nos casos de deiscência de sutura (3). Ainda, a ovariohisterectomia também é eficiente quando se trata na prevenção do nascimento de ninhadas indesejadas, fator importante para o proprietário e controle populacional da espécie (3). Contudo, maiores descrições da técnica ainda perfazem necessárias (2).
Técnica similar foi executada em um experimento feito por Quessada et al. (2009), a qual denominada como técnica experimental de ovariohisterectomia em cadelas, foram realizadas três incisões, duas paramedianas (direita e esquerda) para ligadura dos ovários e uma retroumbilical, para ligadura do útero e retirada dos órgãos. Avaliou-se o cortisol sérico das fêmeas submetidas ao experimento, e pôde-se concluir que, comparada à técnica tradicional de ovariohisterectomia em fêmeas, a técnica experimental desencadeia um maior estresse devido à grande manipulação dos órgãos, sendo indicada para campanhas de esterilização com alta demanda.
Portanto, o objetivo do presente relato foi descrever a técnica de ovariohisterectomia em uma fêmea da espécie Sus scrofa domesticus, a fim de instruir os cirurgiões na abordagem da mesma, principalmente em uma aplicação na raça Mini-Pig. Ademais, este trabalho descreve, também, a eficiência da associação de fármacos para promover anestesia e analgesia satisfatórias no animal, visando o bem-estar do mesmo.
MATERIAIS E MÉTODOS
Avaliação pré-operatória de esterilização eletiva de uma leitoa da raça White Large foi realizada no setor de Clínica Médica e Cirúrgica de Grandes Animais do Hospital Veterinário da Universidade São Judas Tadeu, o animal tinha, aproximadamente, quatro meses de idade e pesava 25 kg. Durante a anamnese a tutora relatou que o animal era domesticado e criado em grupo misto (machos e fêmeas) sem a intenção de reprodução, optando assim pela castração da mesma. No exame clínico não foram detectadas irregularidades quanto ao quadro físico do animal. A paciente encontrava-se saudável, hidratada e sem sinais de estro.
Neste cenário optou-se pela realização da técnica cirúrgica de ovariohisterectomia. Para tal, a paciente foi mantida em jejum hídrico de quatro horas e alimentar de oito horas. O protocolo anestésico instituído deu-se início com base na aplicação de Midazolam (0,6 mg/kg), Quetamina (2 mg/kg) e Acepromazina (0,1 mg/kg) via intramuscular (4). O efeito sedativo dos medicamentos foi eficaz, prosseguindo com a tricotomia ampla da área a ser acessada e a colocação do acesso venoso em veia marginal do conduto auditivo com cateter 20G e fluidoterapia com ringer lactato na velocidade de 5 ml/kg/hora.
Em seguida, foi administrado Propofol (3,2mg/kg) intravenoso, promovendo a indução anestésica (4). A ação do fármaco deu-se em dois minutos, possibilitando a intubação orotraqueal com sonda número 7,5 através do fibroscópio. A manutenção anestésica seguiu por meio do uso de Isoflurano diluído em O2 a 100%, em circuito sem reinalação. A paciente manteve-se em plano anestésico durante todo o procedimento. Após instalação dos equipamentos de monitorização, o animal foi posicionado em decúbito lateral direito para realização da técnica de bloqueio do músculo quadrado lombar, onde foram realizadas a tricotomia e antissepsia das áreas da região lateral (5). A técnica ocorreu com o auxílio de ultrassom acoplado a transdutor linear com frequência intermediária (5-12 MHz), posicionado entre as vértebras L2 e L3. Em seguida, foi inserida uma agulha de Tuohy 22G “in plane”, sendo determinada a borda dorso-ventral como ponto de introdução (Figura 1). O local de inserção foi identificado entre o músculo quadrado lombar e o músculo psoas maior, e administrados 20 ml de Bupivacaína (0,5%) bilateralmente (6).
No período trans-operatório, foram realizadas avaliações dos parâmetros vitais, como a frequência cardíaca e respiratória, capnografia, pressões arteriais sistólica, diastólica e média e saturação de oxigênio, os quais se mantiveram dentro do valor de referência para a espécie (7). Concomitante com tais observações, foi realizada a avaliação hemogasométrica da paciente, onde foram coletadas três amostras de sangue arterial, com intervalo de uma hora entre cada uma, cuja as duas primeiras foram puncionadas com a paciente em plano anestésico, entubada e com oferta de 100% de oxigênio e a terceira coleta com o animal já em recuperação anestésica (Tabela 1). As amostras foram processadas e analisadas no Equipamento Analisador de Gases Sanguíneos, modelo ABL 90 da marca Radiometer Medical ApS. Para a análise hematológica (Tabela 2) e bioquímica (Tabela 3) foram realizadas quatro coletas de amostras sanguíneas no período pré-cirúrgico, no trans-cirúrgico, ao término do procedimento e, por fim, a última coleta para realização do exame hemograma, trinta minutos após o término da cirurgia.
Para a realização do procedimento cirúrgico, o animal foi posicionado em decúbito dorsal, com posterior antissepsia de toda área abdominal realizada com clorexidina e álcool 70%. A técnica foi realizada como a descrita em cadelas por Fossum (2).
Após o posicionamento dos panos de campo deu-se início à cirurgia. A incisão de pele foi realizada na linha média por meio de incisão retro-umbilical de aproximadamente cinco centímetros (Figura 2A). Em seguida realizou-se a divulsão do tecido subcutâneo e adiposo (Figura 2B). O acesso a cavidade abdominal se deu por meio de uma incisão invertida na linha alba e ampliada com o auxílio de tesoura. O omento foi elevado e tracionado para facilitar a identificação das estruturas. Devido ao acúmulo de conteúdo nas alças intestinais, dificultando a observação dos ovários e do útero, optou-se por prolongar a incisão realizada anteriormente. Com o auxílio de gancho com esfera foi possível identificar os cornos uterinos (Figura 2C) e posteriormente o ovário direito, localizado caudalmente ao rim direito, onde este foi isolado com gaze cirúrgica e procedeu-se com a ligadura do complexo arteriovenoso ovariano (CAVO) com fio nylon 3-0 (Figura 2D).
Após a ligadura foi seccionado o pedículo ovariano, onde o mesmo foi inspecionado em busca de possíveis hemorragias. Constatada a ausência, foi seccionado o excesso do fio cirúrgico e o pedículo foi reposicionado na cavidade abdominal. O mesmo procedimento foi repetido para a retirada do ovário esquerdo. Após a secção dos dois ovários, o corpo uterino foi exposto, havendo a necessidade da ruptura do ligamento largo do útero, a fim de facilitar a sua manipulação. Foi realizada a ligadura do corpo do útero cranialmente à cérvix (Figura 2E), o que permitiu a completa remoção do endométrio. A ligadura no útero foi realizada com fio nylon 2-0, por transfixação, incluindo também a veia e artéria uterina. Posteriormente o coto do útero foi seccionado e inspecionado, onde não foi observada a presença de hemorragia (Figura 2F). A musculatura abdominal foi suturada com fio nylon 2-0 em padrão simples interrompido (Figura 2G) e a pele com fio nylon 2-0 em padrão Wolf interrompido (Figura 2H). Ao final da cirurgia foram administrados Meloxicam (0,1mg/kg) e Dipirona (25mg/kg) por via endovenosa, e Penicilina (40.000 UI/kg) por via intramuscular.
Após sete dias da realização da cirurgia, os pontos da pele foram retirados e observou-se a completa cicatrização da ferida cirúrgica do animal.
DISCUSSÃO
Ao avaliar os dados mensurados nos exames hemogasométricos, é possível constatar que os gases sanguíneos se mantiveram em valores consideravelmente normais para a espécie, segundo Gianotti et al. (8), tendo em vista que a paciente se encontrava em plano anestésico, com oferta de 100% de oxigênio nas primeiras coletas. Além disso, é válido ressaltar a redução no valor de pO2 na última amostra, devido a paciente já se encontrar em recuperação anestésica, desvinculada do aparelho de oxigênio (8). Em contrapartida, os valores dos eletrólitos avaliados se apresentaram abaixo do parâmetro referencial e os índices obtidos através da mensuração do pH sanguíneo se mostraram estáveis. Considerando o protocolo alimentar que era instituído para o animal, determinado por uma dieta vegana, pressupõe-se que a deficiência de eletrólitos apresentada no exame hemogasométrico, seja proveniente de uma alimentação desbalanceada. A dieta era composta por legumes, vegetais e cereais, e de acordo com Merchy (9), o equilíbrio eletrolítico dos fluidos sanguíneos depende de diversos fatores, como nível proteico alimentar, suplementos de Na+ e alterações na composição da alimentação quanto ao balanço eletrolítico.
O hemograma consiste na avaliação das hemácias, leucócitos e plaquetas, onde muitas vezes é associado ao exame de bioquímica sanguínea para marcadores hepáticos com intuito de avaliar alterações no fígado, através das enzimas ALT e AST que estão presentes no citoplasma dos hepatócitos e músculos (10). A fosfatase alcalina é sintetizada nos hepatócitos e osteoblastos, a glicose é produzida no pâncreas, porém uma parte é sintetizada no fígado através de gliconeogênese e as proteínas totais, como a albumina e globulina, são produzidas pelo fígado (11). O eritrograma, leucócitos totais e plaquetograma foram realizados pela máquina automatizada BC-2800Vet da marca Mindray e a contagem diferencial de leucócitos através de extensão sanguínea e microscopia óptica comum para avaliação da morfologia celular e coloração. A análise da bioquímica sanguínea de fator hepático foi mensurada através da máquina automatizada LABMAX 100 da marca Labtest. Com o resultado do hemograma podemos perceber algumas alterações de acordo com os valores de referência da pesquisa realizada por Prado (11), onde se constatou que o eritrograma, hemoglobina, eritrócitos, HCM e VCM estavam abaixo do valor esperado, porém, como já mencionado, o animal era submetido à uma dieta restrita, consequentemente, níveis protéicos poderiam sofrer alterações, e há necessidade de uma investigação clínica e laboratorial para poder correlacionar essas alterações hematológicas com os componentes da alimentação, necessitando assim, maiores pesquisas na área para evidenciação científica dos dados.
O uso da técnica de ovariohisterectomia nesse animal se fez necessário devido à escassez de descrições para a espécie (Sus scrofa domesticus). Tal procedimento foi escolhido com o intuito de esterilizar a paciente, reduzindo, assim, os riscos de doenças reprodutivas (2).
Todavia, ao realizar o procedimento cirúrgico deve-se considerar as diferenças anatômicas dos suínos, sendo necessário o conhecimento da topografia das estruturas presentes na cavidade abdominal. O aparelho reprodutor da porca possui tubas uterinas que se apresentam como um longo par de tubos envelopados medindo entre 15 a 30 centímetros (13). Por sua vez, o útero é composto pelo corpo, cérvix e dois cornos, apresentando-se com cerca de 5 centímetros de comprimento cada um. A cérvix possui aproximadamente 10 centímetros de comprimento, sendo extremamente longa e flexuosa, disposta em numerosas espirais, assemelhando-se ao intestino delgado (13). O ligamento largo do útero é descrito como mesométrio, o qual é responsável pela sustentação do útero no peritônio, podendo ser facilmente confundido com o mesentério, devido a sua conformação anatômica e distribuição vascular (13). Já os ovários estão localizados em região caudal ao rim, sendo móveis e irregulares, com corpos lúteos e folículos projetados em sua superfície, dando-lhes aparência lobulada (13).
Para o procedimento de OH, é ideal que o animal esteja em jejum de 12 a 16 horas de alimentos sólidos, pois devido ao metabolismo lento, a presença de conteúdo nas alças intestinais pode dificultar a manipulação e localização do trato reprodutivo durante o transoperatório (14). A incisão cirúrgica deve possuir de 7 a 10 centímetros para facilitar a abordagem abdominal (14). Ainda, o manuseio dos instrumentais para a abertura das camadas da pele se torna dificultoso, devido à friabilidade da espessa camada de tecido adiposo que esses animais possuem (14), tal como, observado nesse caso.
As técnicas anestésicas em suínos têm sido pouco abordadas nos últimos anos. Torna-se provável que esse efeito esteja ligado à criação do tipo industrial, em que a espécie, por menor problema observado, estando passível para consumo, é encaminhado para o abate (6). No entanto, neste trabalho, tornou-se possível a determinação de uma combinação de fármacos anestésicos, os quais promoveram analgesia e dessensibilização adequada, além de agregar valor ao bem estar da paciente. A associação da técnica de bloqueio do músculo quadrado lombar, adaptada segundo Massone (5), tem como intuito estabelecer um controle da dor do paciente, possibilitando uma analgesia trans e pós-operatória. Ademais, esta técnica visa reduzir os volumes de fármacos anestésicos utilizados durante o procedimento cirúrgico e reduzir a necessidade de medicamentos opióides no pós-operatório (4). A técnica do bloqueio do músculo quadrado lombar foi aplicada pela primeira vez na espécie suína, neste estudo, sendo mais comum na rotina anestésica de cães e gatos.
CONCLUSÃO
O presente relato trouxe em questão a descrição da técnica de ovariohisterectomia em leitoa, até então não descrita na literatura. Tal técnica se mostrou de fácil execução e abordagem, desde que, haja período de jejum maior que doze horas. Ainda se observou a ausência de hemorragia e reação tecidual. Assim sendo, a OH apresentou-se como técnica válida para castração de fêmeas suínas.
Esse artigo foi originalmente publicado em Veterinária e Zootecnia, Botucatu, v. 28, p. 1–9, 2021. DOI: 10.35172/rvz.2021.v28.579. Disponível em: https://rvz.emnuvens.com.br/rvz/article/view/579.