Introdução.
O bem-estar animal pode ser definido através de um enfoque multidimensional, considerando que somente pelo atendimento de suas demandas relacionadas às emoções, ao funcionamento biológico e ao comportamento natural pode-se garantir uma boa qualidade de vida para os animais. Considera-se também que o bem-estar dos suínos, quer quando alojados em granjas, quer nos abatedouros, é uma condição que pode ser mensurada cientificamente através da aplicação de protocolos de avaliação (MANTECA et al., 2013). A melhor compreensão deste tema é atingida quando são consideradas a inter-relação entre a ciência do bem-estar animal, a ética e as legislações de proteção e bem-estar animal. A ciência desempenha um papel importante na elucidação das questões levantadas pela sociedade, a ética fornece o entendimento do que é correto ou errado na relação com os animais não humanos, e, finalmente, as legislações representam aqueles aspectos comprovados pela ciência e definidos pela sociedade como premissas a serem atendidas no trato com os animais (DIAS; SILVA; MANTECA, 2014). A suinocultura brasileira detém um nível zootécnico, sanitário, ambiental e socioeconômico elevado, posicionando o país entre os melhores produtores mundiais, no entanto, ainda há uma grande necessidade de conhecimento e diálogo para a melhora do bem-estar dos suínos.
Desenvolvimento.
Os debates envolvendo o bem-estar animal são antigos, entretanto, ganharam intensidade na Europa após a Segunda Guerra Mundial, o que provocou mudanças na forma de produzir, transportar e abater os suínos. Os avanços obtidos pela ciência do bem-estar animal constituíram a base destas mudanças de conceitos, anteriormente debatidos apenas pela ética, mas que ganharam força para transformar os sistemas produtivos. A União Europeia passou a incluir os requerimentos de bem-estar dos animais como um conceito em suas legislações após o reconhecimento pelo Tratado de Amsterdam, que define que os animais são “seres sencientes”, capazes de sentir dor, prazer e ter consciência de si mesmos e dos demais animais (THE TREATY OF AMSTERDAM, 1997). Neste contexto, a Europa passou a ser referência mundial em normas de proteção e bem-estar animal, sendo suas leis a base para nortear as discussões sobre a espécie suína no cenário brasileiro. Na área de produção estão compreendidas duas normas: a Diretiva 98/58/CE (CONSEJO DE LA UNIÓN EUROPEA, 1998), que trata das condições mínimas para proteção dos animais de produção de alimentos, lã, couro e pele; e a Diretiva 2008/120/CE (CONSEJO DE LA UNIÓN EUROPEA, 2008), específica para a espécie suína. Esta última estabelece, por exemplo, que todas as fêmeas prenhes (porcas e leitoas) devem gestar coletivamente entre a quarta semana após a cobertura e o sétimo dia antes da data prevista para o parto, o que seguramente é um dos itens mais debatidos dirigidos para a espécie. Na área do transporte, o Regulamento (CE) Nº 1/2005 (CONSEJO DE LA UNIÓN EUROPEA, 2005) concentra os aspectos mais importantes, entre eles, o estabelecimento de que a densidade para animais de 100 kg de peso vivo não deva ser superior a 235 kg/m2. Quanto ao abate, o Regulamento (CE) Nº 1099/2009 (CONSEJO DE LA UNIÓN EUROPEA, 2009) trata do bem-estar animal nesta etapa do processo, partindo do princípio que o procedimento pode provocar dor, medo ou sofrimento aos animais, mesmo diante de excelentes condições técnicas e físicas. Portanto, a normativa exige que os animais devam ser sacrificados unicamente após a insensibilização. No Brasil, as pressões por mudanças que poderiam ser exercidas pelo consumidor, não estão sendo capazes, de, isoladamente, provocarem mudanças significativas que venham a pressionar o cenário relativo ao consumo interno de carne suína. Mas como um país exportador e forte concorrente, as demandas por mudanças em prol do bem-estar dos suínos têm inevitavelmente um viés comercial. Tecnicamente o potencial da suinocultura brasileira adotar os padrões europeus de bemestar de suínos na fase de produção mostra-se possível, sendo que o país tem fortes vantagens para a implantação destes modelos, destacando a grande disponibilidade de recursos naturais e humanos, quando comparado com outros países, o que colocaria o Brasil em igualdade competitiva com os principais players mundiais (DIAS; SILVA; MANTECA, 2015). No entanto, mudanças desta magnitude, embora tecnicamente possíveis, não são fáceis de serem implementadas sem uma profunda discussão envolvendo toda a cadeia da carne suína. Pode-se avaliar este cenário de mudanças considerando as ações dos principais envolvidos neste mecanismo. Na atualidade, as ações oficiais brasileiras voltadas para as questões do bem-estar animal são desenvolvidas pela Comissão Técnica Permanente de Bem-estar Animal (CTBEA), que é coordenada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). Neste contexto, numa análise das principais ações governamentais de proteção e bem-estar animal envolvendo a espécie suína, destacamos que na área da produção intensiva confinada não possuímos nenhuma norma específica, o que torna a maioria dos nossos sistemas produtivos desprovidos de regulamentação. No entanto, o setor de produção orgânica, através da Instrução Normativa nº 46 (BRASIL, 2011), estabelece o regulamento técnico para estes produtores, comtemplando as ações de bem-estar. Esta regulamentação é efetivamente a única norma que trata do tema na área da produção de suínos. Na área do transporte, a Portaria 575 de 2012 (BRASIL, 2012) representa a ação governamental mais importante, tendo como objetivo a criação de normas que atendam o bem-estar dos animais durante esta etapa. A mesma concentra esforços na definição dos requisitos mínimos para os veículos destinados ao transporte de carga viva e no treinamento dos condutores destes veículos para a garantia do bem-estar. Todavia, esta norma ainda não foi regulamentada. Quanto ao abate, a Instrução Normativa nº 3 (BRASIL, 2000) trata do manejo pré-abate e do abate humanitário. Esta legislação está em fase final de revisão e deverá ser reeditada em breve, contemplando as diretrizes mundiais da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) e da União Europeia (UE). Outro documento que merece destaque, embora seja somente uma recomendação (não têm caráter obrigatório), é a Instrução Normativa nº 56 (BRASIL, 2008), também conhecida por REBEM (Recomendações de boas práticas de bem-estar para animais de produção e de interesse econômico), pois é através dela que importantes princípios de bem-estar são fomentados junto ao sistema produtivo. Além disso, no ano de 2013, o MAPA assinou um Memorando de Cooperação Técnica com a Direção Geral da Saúde e da Proteção ao Consumidor da Comissão Europeia (DG SANCO). O intercâmbio com este órgão amplia o diálogo do país para solucionar questões técnico-científicas e também comerciais envolvendo a União Europeia (BRASIL, 2013). No setor público no país destaca-se o papel da EMBRAPA Suínos e Aves e de algumas universidades que vêm desenvolvendo pesquisas e gerando conhecimentos aplicados para a nossa realidade climática, estrutural e de recursos humanos, embora haja ainda uma carência de informações. No âmbito privado é onde se concentram as maiores ações aplicadas de mudanças no Brasil, comumente em consonancia com os órgãos públicos. Neste sentido, destaca-se o termo de cooperação entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e a Associação Brasileira dos Criadores de Suínos (ABCS). Esta relação tem por finalidade estabelecer em conjunto diretrizes sobre o bem-estar dos suínos, elaborando um cronograma de trabalho que atenda toda a cadeia produtiva (ABCS, 2014). No ano de 2015, a ABCS realizou Fóruns regionais de bem-estar (PR, RS, DF, GO, ES, MG), abordando as boas práticas agropecuárias e as legislações relacionadas ao tema com objetivo de envolver a clase produtiva neste diálogo, compreendendo que afinal é o suinocultor aquele quem zela pelo bem-estar do suíno a maior parte do tempo. Na esfera privada, um ponto que merece destaque é a transição para o modelo de gestação coletiva. A BRF, maior empresa integradora de suínos do país, anunciou que no prazo de 12 anos deverá eliminar o alojamento individual de matrizes de suas granjas. Neste período ocorrerá a migração das unidades atuais para o modelo coletivo, além disso, os novos projetos já nascerão com esta concepção (BRF, 2014). A JBS, segunda maior empresa processadora de carne suína no país, anunciou que até 2016 deverá fazer esta transição em 100% de suas granjas próprias e comprometeu-se em apoiar esta iniciativa junto aos seus fornecedores (JBS, 2015). Além destas duas iniciativas, muitos dos novos projetos de ampliação estão sendo implantados adotando-se o sistema de gestação coletiva, como é o caso da unidade da Frísia Cooperativa Agroindustrial (Carambeí/PR).
Deve-se ressaltar também que alguns produtores independentes, de forma voluntária e pioneira, vislumbrando as vantagens deste modelo, já estão operando suas unidades produtivas sob o modelo de gestação coletiva. Destacam-se a Fazenda Miunça (DF), Nutribras Alimentos (MT) e Granjas Santa Cruz e Bom Retino em Minas Gerais. Com relação às práticas de manejo que causam mutilações nos recém-nascidos, elas vêm sendo questionadas quanto a forma e necessidade de execução, passando asofrerem pressão por banimento, pois são dolorosas e afetam o bem-estar dos leitões independentemente da idade na qual são realizadas. Como soluções para estas práticas, a castração cirúrgica de machos pode ser substituída pela imunocastração; a secção da cauda e o corte ou desgaste dos dentes é entendida como desnecessária quando os suínos têm suas necessidades básicas atendidas; e a identificação através de mossas nas orelhas deve ser substituída por outros métodos (SILVA; DIAS; MANTECA, 2015). As ONGs também colaboram positivamente quanto aos esforços de melhorarem o bem-estar animal, sendo a Humane Society International (HSI) e a World Animal Protection (WAP) as mais atuantes no Brasil. A WAP possui um acordo de cooperação técnica com o MAPA (BRASIL, 2007), e uma das ações de grande impacto desenvolvida foi o Programa Nacional de Abate Humanitário (Steps), que capacitou profissionais da indústria quanto ao correto manejo préabate e ao abate. Neste esforço conjunto a cadeia de suprimentos também tem uma função primordial na proposição e na difusão de tecnologias “amigas do bem-estar animal”. São destaques os novos equipamentos, aditivos nutricionais, medicamentos e vacinas que são ofertados no mercado. Todavia, um importante balizador da adoção destas tecnologias é a relação custo/benefício percebida pelo setor, ou seja, se uma tecnologia se consolida no mercado, certamente ela estará garantindo tanto um benefício econômico como melhorando o bem-estar animal. Um dos fundamentos para fornecer condições que propiciam melhor qualidade de vida para os animais é a capacitação das equipes envolvidas na atividade (produção, transporte e abate). Como um aliado deste conceito encontra-se a maioria dos eventos técnicos brasileiros (congressos, seminários, simpósios, workshops), que passaram nos últimos anos a adotar uma pauta consistente sobre o tema bem-estar.
Conclusões.
O Brasil não possui legislação de proteção e bem-estar animal que contemple a fase de produção, o que deixa o país vulnerável mercadologicamente quando avaliamos esta etapa. No entanto, com as atualizações previstas nas normas para as fases de transporte e abate, o país deberá atender as demandas relacionadas aos mercados mais exigentes. Na iniciativa privada se concentram os maiores avanços a favor do bem-estar, pois a cadeia produtiva, de forma voluntária, vem aderindo aos conceitos que proporcionam melhorias na qualidade de vida do suíno. O Brasil, de forma proativa, está caminhando na mesma direção que os maiores líderes mundiais do tema bem-estar dos suínos.
Referências.
1. ABCS. ABCS lidera diálogo sobre bem-estar animal no Brasil. Disponível em: <http://www.abcs.org.br/informativo-abcs/1912-abcs-lidera-dialogo-sobre-bem-estar-animal-nobrasil>. Acesso em: 27 nov. 2014.
2. BRASIL. Instrução Normativa nº 3, de 17 de janeiro de 2000. Aprovar o Regulamento Técnico de Métodos de Insensibilização para o Abate Humanitário de Animais de Açougue. Diário Oficial da União, Brasília, 24 jan. 2000, Seção 1, p.14.
3. BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Termo de Cooperação Técnica. MAPA E WSPA. Brasília, 2007.
4. BRASIL. Instrução Normativa nº 46, de 6 de outubro de 2011. Estabelece o regulamento técnico para os sistemas orgânicos de produção animal e vegetal, bem como as listas de substâncias para uso nos sistemas orgânicos de produção animal e vegetal. Diário Oficial da União, Brasília, 7 out. 2011, seção 1, p. 4.
5. BRASIL. Instrução Normativa nº 56, de 6 de novembro de 2008. Estabelece os procedimentos gerais de Recomendações de Boas Práticas de Bem-Estar para Animais de Produção e de Interesse Econômico - REBEM, abrangendo os sistemas de produção e o transporte. Diário Oficial da União, Brasília, 7 nov. 2008, seção 1, p. 5.
6. BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e Cooperativismo. Memorando de cooperação técnica entre MAPA e DG-SANGO. Brasília, jan. 2013.
7. BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Portaria nº 575, de 25 de junho de 2012. Instituir Grupo de Trabalho (GT) com o objetivo de elaborar e propor regulamentação de transporte de animais de produção ou interesse econômico por meio rodoviário e de desenvolvimento de material técnico, visando qualificação dos atores envolvidos nesta etapa da cadeia produtiva. Diário Oficial da União, Brasília, 26 jun. 2012, seção 2, p. 4.
8. BRF. BRF se compromete a adotar o sistema de gestação coletiva na produção de matrizes suínas. Disponível em:<http://www.brf-br.com/ imprensa/impressao.cfm?codigo=534>. Acesso em: 25 nov. 2014.
9. CONSEJO DE LA UNIÓN EUROPEA. Directiva 2008/120/CE del Consejo de 18 de diciembre de 2008 relativa a las normas mínimas para la protección de cerdos (Versión codificada). Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/ES/TXT/?uri=CELEX:32008L0120>. Acesso em: 1 dez. 2012.
10. CONSEJO DE LA UNIÓN EUROPEA. Directiva 98/58/CE del Consejo de 20 de julio de 1998. Relativa a la protección de los animales en las explotaciones ganaderas. Diario Oficial de la Unión Europea, n. L 221, 8 ago. 1998, p. 23.
11. CONSEJO DE LA UNIÓN EUROPEA. Reglamento (CE) nº 1/2005 Del Consejo de 22 de diciembre de 2004. Relativo a la protección de los animales durante el transporte y las operaciones conexas y por el que se modifican las Directivas 64/432/CEE y 93/119/CE y el Reglamento (CE) nº 1255/97. DO nº L 3 de 5.1. 2005, p. 1.
12. CONSEJO DE LA UNIÓN EUROPEA. Reglamento (CE) nº 1099/2009 Del Consejo de 24 de septiembre de 2009. Relativo a la protección de los animales en el momento de la matanza. DO nº L 303 de 18. 11. 2009, p. 1.
13. DIAS, C. P.; SILVA, C. A.; MANTECA, X. Bem-estar dos suínos. Londrina: Ed. Midiograf, 2014.
14. DIAS, C. P.; SILVA, C. A.; MANTECA, X. The brazilian pig industry can adopt european welfare standards: a critical analysis. Ciência Rural, Santa Maria, v.45, n.6, p.1079-1086, jun, 2015.
15. JBS. JBS se compromete a abandonar o confinamento de porcas reprodutoras em gaiolas de gestação. Disponível em:< http://www.suinoculturaindustrial.com.br/ noticia/jbs-se-compromete-aabandonar- o-confinamento-de-porcas-reprodutoras-em-gaiolas-degestacao/ 20150606132441_O_088>. Acesso em: 8 jun. 2015.
16. MANTECA, X; SILVA, C. A.; BRIDI, A. M.; DIAS, C. P. Bem-estar animal: conceitos e formas práticas de avaliação dos sistemas de produção de suínos. Semina: Ciências Agrárias, Londrina, v. 34, n. 6, supl. 2, p. 4213-4230, 2013.
17. SILVA, C. A.; DIAS, C. P.; MANTECA, X. Práticas de manejo com leitões lactentes: revisão e perspectivas vinculadas ao bem-estar animal. Science and animal health, v.3, n.1, p.113-134, jan./jun., 2015.
18. THE TREATY OF AMSTERDAM. Protocol on protection and welfare of animals. Official Journal, C 340, 10 nov. 1997.
***O TRABALHO FOI ORIGINALMENTE APRESENTADO DURANTE O XVII CONGRESSO ABRAVES 2015- SUINOCULTURA EM TRANSFORMAÇÂO, ENTRE OS DIAS 20 e 23 DE OUTUBRO, EM CAMPINAS, SP.