De acordo com a Food and Agriculture Organization of the United Nations - FAO, o setor agropecuário é responsável atualmente por aproximadamente 69% do consumo mundial de água (FAO, 2002), além de contribuir significativamente na contaminação dispersa dos ativos ambientais (água, solo e ar), pelo manejo inadequado dos resíduos da produção e o uso indiscriminado de pesticidas.
A suinocultura é reconhecida como sendo uma das atividades agropecuárias de maior potencial poluente devido à geração de grande volume de efluentes com elevada carga de matéria orgânica e nutrientes. Como conseqüência, nas últimas décadas, as questões ambientais têm sido recorrentes nos fóruns de discussões referentes à atividade, tanto no Brasil como nos demais países produtores.
Os fatores acima enumerados, aliados à maior conscientização da sociedade quanto aos efeitos deletérios da poluição ambiental à saúde humana, têm pressionado a cadeia produtiva de suínos a investir no desenvolvimento e adoção de tecnologias que possibilitem mitigar o impacto ambiental da produção.
Em termos de complexidade de implementação e operacionalização, as alternativas existentes para o manejo e tratamento de dejetos podem ser dispostas na seguinte ordem (Fig. 1):
Fig. 1 - Ordem de complexidade das tecnologias para manejo e tratamento de dejetos de suínos.
No caso de não se dispor de áreas para a aplicação integral dos resíduos produzidos pela criação de suínos, deve-se considerar a produção de fertilizante sólido (compostagem, cama sobreposta), como uma alternativa promissora para a exportação dos nutrientes para regiões menos saturadas.
Portanto, a criação de suínos em sistema de cama sobreposta pode ser citada como uma das alternativas tecnológicas que reduzem os riscos de contaminação ambiental pelos dejetos. O sistema de cama sobreposta ou "deep bedding" consiste na criação dos animais sobre um leito profundo (Lo, 1992), composto de um substrato (maravalha, casca de arroz ou palha) que absorve os dejetos dos animais, resultando na eliminação de geração de efluentes líquidos, reduzindo sensivelmente os riscos de escorrimento e lixiviação pela conversão do manejo do dejeto da fase líquida para sólida.
Adicionalmente, a conversão de manejo pode reduzir em cerca de 50% os custos construtivos (Oliveira, 1999), pela eliminação da necessidade de canaletas e depósitos de efluentes. Algumas experiências internacionais têm relatado reduções ainda maiores de custos (60-70%) com a utilização de materiais alternativos, tais como estruturas metálicas mais leves e filmes de PVC, conferindo maior versatilidade e mobilidade ao sistema (Kruger et al., 2006).
O princípio de funcionamento do sistema de cama sobreposta baseia-se na estabilização dos dejetos por meio da compostagem. À medida que as camas absorvem o dejeto, estas iniciam o processo de fermentação aeróbia promovido pela movimentação dos animais. O aumento da temperatura causada pela fermentação, aliado ao manejo adequado das camas, pode reduzir a proliferação de vetores e minimizar problemas de odor.
Após transcorrido o período de utilização das camas, estas poderão ser destinadas ao uso agronômico como composto orgânico.
Embora as vantagens do ponto de vista ambiental sejam bastante significativas, existem algumas lacunas que impedem a maior difusão da tecnologia, dentre as quais se destacam: o desempenho zootécnico, a sanidade animal, o custo e disponibilidade do substrato das camas e a dificuldade dos produtores em se adaptar às diferenças no manejo.
Um exemplo de erro comum, ocasionado pelo desconhecimento quanto às diferenças no manejo do sistema de cama é a aspersão excessiva de água sobre os animais em períodos de temperatura elevada. A incorporação de água às camas, aliada ao calor desprendido pela fermentação, eleva a concentração de vapor d´água e consequentemente o calor latente no ambiente. Como resultado, tem-se que, ao contrário de se aliviar o desconforto dos animais, ocorre o agravamento do quadro, com perdas significativas de desempenho e aumento da mortalidade.
O fato acima descrito demonstra como os fatores climáticos influenciam no desempenho dos animais e no tipo de manejo a ser empregado dentro do sistema de cama sobreposta.
Nos países de clima temperado, como Estados Unidos e Canadá, a conversão alimentar dos animais criados sobre cama não apresenta diferenças significativas daqueles criados nos sistemas convencionais durante os períodos de verão. Entretanto, para os períodos mais frios, são verificadas reduções significativas de ganho de peso por kg de ração consumida (Honeyman & Harmon, 2003). Nesses países, temperaturas de -10 à -15oC são freqüentes durante o inverno e os galpões convencionais de confinamento, usualmente, dispõem de sistemas de aquecimento, ao contrário das unidades de cama sobreposta avaliadas, as quais se assemelhavam a espécies de tendas dispostas em campo aberto. Portanto, uma parcela significativa dos nutrientes consumidos pelos animais criados no sistema de cama sobreposta nessas condições eram utilizados para a manutenção da temperatura corporal.
Nos países tropicais, ocorre justamente o oposto. Nos períodos de verão, a produção de calor causada pela fermentação aeróbia das camas pode ser prejudicial ao conforto térmico dos animais. De acordo com estudos realizados na Austrália, onde as condições climáticas são semelhantes ao Brasil, a conversão alimentar no sistema de cama chega a ser 5-10% inferior ao sistema convencional (Kruger et al., 2006).
Por outro lado, diversos experimentos realizados pela Embrapa Suínos e Aves em parceria com outras instituições de pesquisa e com a iniciativa privada, têm comprovado ser possível contornar ou minimizar as questões referentes ao menor desempenho zootécnico dos animais criados sobre cama com a implantação de um manejo adequado, sendo possível atingir desempenho estatisticamente equivalente ao dos sistemas convencionais (Oliveira, 1999; Oliveira et al., 2001; Amaral et al., 2002a; Higarashi et al., 2005).
Nos países desenvolvidos, a necessidade de reposição e revolvimento periódico das camas, resulta em incremento de aproximadamente 20% no custos de produção devido ao aumento da mão-deobra, comparativamente ao piso totalmente ripado (Kruger et al., 2006). No Brasil esse aumento não é tão pronunciado, tanto pelo menor custo da mão-de-obra, como pelo fato de que o sistema predominante no país é o de piso compacto, que também necessita de mão-de-obra para a realização da raspagem e/ou lavagem periódica do piso.
No que se refere à sanidade, as questões são mais complexas e demandam pesquisas mais profundas: o prolongado contato dos animais com os dejetos do próprio lote e de lotes precedentes, pode favorecer a propagação de doenças, destacando-se a linfadenite granulomatosa, causada por Micobactérias do Complexo Micobacterium avium (MAC).
Em decorrência das questões sanitárias, muitos países recomendam a substituição completa das camas a cada troca de lote. Contudo, esta prática pode inviabilizar economicamente a tecnologia dependendo do custo do substrato empregado e também pela baixa qualidade agronômica das camas resultantes da passagem de um único lote (baixa concentração de nutrientes e pouco tempo de fermentação/ estabilização).
Atualmente, os estudos da Embrapa Suínos e Aves vêm avaliando formas de manejo que permitam a reutilização das camas sem comprometer outros aspectos produtivos relevantes, considerando o sistema de forma integrada, contemplando os aspectos de desempenho zootécnico, segurança sanitária, viabilidade econômica e ganhos ambientais.
O objetivo do presente trabalho é fornecer recomendações para que o produtor possa otimizar o manejo e a operacionalização do sistema de cama sobreposta. Essas recomendações foram elaboradas a partir da compilação de informações resultantes das pesquisas realizadas no Brasil, cujas conclusões encontraram consonância com diversos relatos internacionais.
Recomendações Considerando os Aspectos Construtivos
Algumas recomendações construtivas devem ser observadas para a instalação de uma unidade de produção de suínos em cama sobreposta:
- Escolher o local para instalação em área elevada, sem riscos de inundações. Realizar uma drenagem adequada do terreno para evitar que águas pluviais se incorporem às camas ou que estas sejam carregadas por enxurradas.
- Optar por áreas com solo de baixa permeabilidade para reduzir os riscos de infiltrações. O solo do local aonde as camas serão dispostas deverá ser compactado, impermeabilizado ou concretado.
- Local de instalação da unidade deve permitir fácil acesso de automóveis e equipamentos para a movimentação e manejo dos animais e das camas/substratos.
- A construção deve permitir que o ambiente interno seja bem arejado, sem barreiras que impeçam a ventilação natural das instalações, reduzindo o desconforto ocasionado pelo aumento na temperatura das camas e auxiliando na evaporação do excesso de umidade.
- A unidade deve, preferencialmente, ser orientada no sentido Leste/Oeste no comprimento e os bebedouros e comedouros devem ser instalados na face Sul, evitando a incidência direta do sol que pode acelerar a fermentação/deterioração da ração e aquecer a água de dessedentação.
- Para assegurar que o galpão se mantenha o mais limpo e seco possível, recomenda- se a construção de uma plataforma de concreto (1,5 m largura x comprimento do galpão x profundidade da cama na altura) aonde serão instalados os comedouros e bebedouros (ver Fig. 2).
Fig. 2 - Vista dos comedouros e bebedouros instalados em uma unidade de cama sobreposta antes do seu preenchimento com o substrato da cama.
- Não existe uma recomendação específica do tipo de comedouros e bebedouros mais adequados ao sistema de cama sobreposta, mas preferencialmente deve- se optar por bebedouros que minimizem o desperdício de água, tais como os bebedouros de concha, bite ball, de nível, entre outros.
- Telhado deve ter abas laterais mais largas (cerca de 1,5 m para pé-direito de 2,8 m), para proteger os animais da incidência solar (Oliveira & Fialho, 2000) e reduzir o risco de molhar as camas em períodos de chuva intensa.
- Reservar uma área próxima à unidade de produção, devidamente impermeabilizada, para armazenar as camas utilizadas para completar sua estabilização (compostagem) antes de serem destinadas a utilização em lavouras como composto orgânico.
Recomendações Considerando os Aspectos de Conforto/Desempenho Animal
As principais questões envolvendo o conforto animal nos sistemas de cama sobreposta estão relacionados ao controle da temperatura dentro das unidades. O excesso de calor na unidade pode ser diagnosticado pela observação de formação de poças de lodo próximos aos bebedouros e quando os animais começam a estercar nas áreas de concreto, destinadas à alimentação.
- A estratégia mais empregada para minimizar os problemas de excesso de calor é o alojamento dos primeiros lotes, em períodos de temperatura amena, antes do inverno. Esse cuidado é tomado uma vez que, o maior desenvolvimento de calor nas camas ocorre durante a passagem dos primeiros lotes.
- Buscar manter as cortinas abertas e propiciar a melhor ventilação possível ao ambiente nos períodos mais quentes, procurando não incorporar substrato novo e/ou revolver as camas.
- Outra alternativa de manejo que tem apresentado resultados promissores em regiões mais quentes, como o Centro Oeste do Brasil, é a utilização de camas menos profundas do que o usualmente utilizado no Sul (50 cm). A profundidade de 25-30 cm pode reduzir a fermentação aeróbia e o calor gerado pelas camas, no entanto, para esses casos é necessário se realizar a troca mais freqüente do substrato.
- A instalação de nebulizadores também pode ser uma alternativa para regiões muito quentes, porém deve se atentar para a regulagem da vazão para não se correr o risco de umedecer as camas.
- Em períodos de baixa temperatura, pode se realizar o revolvimento das camas na presença dos animais para promover a aeração e aumentar a fermentação, a fim de promover a elevação da temperatura das camas, melhorando o conforto térmico dos animais.
- Disponibilizar áreas adequadas ao peso metabólico dos animais pode melhorar o seu desempenho. Uma área ideal/animal propicia maior conforto e bem estar, mas áreas excessivas promovem aumento na movimentação, prejudicando o ganho de peso. Sugestão de áreas de cama a serem disponibilizadas por animal nas diferentes fases: 0,8m2/ suíno, para animais entre 20-50 kg; 1,1m2/ suíno entre 50-80 kg e 1,3m2/suíno para animais acima de 80 kg.
Recomendações Considerando os Aspectos Sanitários
- Antes do alojamento, realizar uma cuidadosa avaliação sanitária dos animais, inclusive, com testes de tuberculina PPD aviário para verificar se o plantel teve contato com o MAC, assegurando dessa forma, que os suínos alojados se encontrem em boas condições de saúde, reduzindo os riscos de condenações no abate.
- Evitar a utilização de serragem como substrato, pois estudos demonstraram que a mesma favorece o desenvolvimento do MAC (Matlova et al., 2003; Matlova et al., 2004). Dar preferência a utilização de casca de arroz, maravalha ou palha (Amaral et al., 2002b).
- Realizar revolvimentos periódicos nas áreas saturadas para eliminar excesso de umidade, o que leva ao estabelecimento de anaerobiose nas camas, aumentando a emissão de odor e gases prejudiciais à saúde humana e dos animais. Estima-se que em um sistema de cama bem manejado, obtêm-se reduções de 50% de emissão de odor.
- A cada transferência de animais, as camas da baia desalojada devem ser cuidadosamente revolvidas com o auxílio de pás, garfos ou arados, a fim de aerar o meio e promover o aumento da temperatura destas, seguindo-se um intervalo mínimo de uma semana de vazio sanitário (do tipo "todos dentro/todos fora"). Este manejo favorece a evaporação de água e reduz a pressão de infecção pela eliminação de muitos patógenos termosensíveis e/ou estritamente anaeróbios das camas, reduzindo os riscos de transmissão de eventuais doenças aos lotes posteriormente instalados.
- Observar sistematicamente o comportamento dos animais, uma vez que a criação sobre cama propicia condições para que os mesmos possam manifestar comportamento próximo ao do ambiente natural. Os animais prostrados, com menor ganho de peso ou com qualquer sintoma aparente de doenças como diarréia, devem ser rapidamente retirados do sistema e isolados do restante do rebanho para evitar a contaminação das camas, o que poderia se constituir em um risco para os demais animais.
- Em unidades maiores (acima 500 animais alojados), onde a observação individual se torna mais difícil, recomendase fazer uma vistoria 2 vezes ao dia, caminhando em ziguezague para forçar a movimentação de todos os animais. Por ocasião das vistorias, observar se todos os comedouros e bebedouros estão limpos e operando adequadamente.
- Subdividir a unidade em baias para separar o rebanho em lotes menores, pode reduzir os riscos de eventuais ferimentos quando os animais se assustam, além de permitir uma melhor observação do comportamento individual destes.
- Após utilizadas, as camas devem ser removidas e dispostas em local adequado aonde deverão passar por período adicional de compostagem para sua total estabilização, garantindo a maior qualidade e segurança na utilização das mesmas como composto orgânico.
Quando trocar as camas?
A recomendação de freqüência de substituição do substrato das camas, ainda gera alguma controvérsia. A decisão de troca das camas deverá considerar o custo do material utilizado na região e a observação da evolução do desempenho zootécnico e sanitário dos animais, à medida que os lotes se sucedem. Alguns fatores contribuem para a maior ou menor taxa de degradação das camas; as condições climáticas, o tipo de substrato, a idade dos animais, a densidade de alojamento e os cuidados de manejo das mesmas (revolvimentos, umidade, etc).
Muitos países recomendam a troca total das camas a cada saída de lotes para minimizar os riscos para a saúde dos animais. Tal recomendação, implica em uma demanda por substrato que varia entre 0,3 a 1,8 kg/suíno/ dia.
No Brasil, foi demonstrado que medidas de controle sanitário rigoroso sobre os animais alojados em sistemas de cama sobreposta, permitem a obtenção de bons resultados mesmo com a realização da troca anual das camas (Oliveira et al., 2002; Higarashi et al., 2005). No decorrer deste período, são gastos mais 10 a 20% (m/m) de substrato para se realizar a adição estratégica ou substituição parcial das camas nas áreas de maior saturação. Através desse manejo, é possível reduzir a demanda de substrato para cerca de 0,1 kg/suíno/ano.
As vantagens de se viabilizar tal manejo, não se restringe somente à economia de custos com a compra dos substratos, mas se reflete também na melhoria da qualidade agronômica das camas já utilizadas, por estas apresentarem maior maturação e concentração de nutrientes.
Adicionalmente, quando o substrato utilizado não é um resíduo agrícola, como palha ou casca de arroz, a reutilização das camas passa a ser relevante por poupar os recursos naturais (redução dos cortes de árvores para produção de maravalha) e deslocar de forma positiva o balanço energético geral da produção.
Conclusão
O sistema de cama sobreposta é uma tecnologia que ainda demanda alguns estudos para avaliar formas de manejo que possam minimizar os riscos de doenças e otimizar o desempenho dos animais. Entretanto, a maior dificuldade na implantação do sistema reside no fato de que o mesmo exije mudanças nas rotinas das granjas e, sobretudo, dos produtores, em virtude da conversão do manejo dos dejetos da fase líquida para sólida.
Apesar desses fatores, o sistema constitui-se em uma tecnologia que não deve, de forma alguma ser descartada, pois está em consonância com as novas tendências mundiais que contemplam, além dos aspectos produtivos, a preservação dos recursos naturais, o bem-estar animal e a melhoria na qualidade de vida e da saúde dos produtores e população em geral.
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