Introdução
O sangue é um fluido corporal presente no sistema circulatório dos animais composto por três tipos celulares: glóbulos brancos, glóbulos vermelhos e plaquetas, suspensos em um meio intercelular o plasma (Garcia-Navarro & Pachaly, 1994; Kantek & Navarro, 2005; Thrall, 2015). Os glóbulos vermelhos também conhecidos como hemácias são constituídos por globina e hemoglobina, responsáveis por realizar o transporte de oxigênio para os tecidos. Por sua vez, os glóbulos brancos ou leucócitos atuam na defesa do organismo. O último componente celular, mas não menos importante, as plaquetas atuam no processo de hemostasia (Garcia-Navarro & Pachaly, 1994; Kantek & Navarro, 2005; Thrall, 2015).
As plaquetas têm um papel fundamental no indivíduo, atuando, sobretudo no processo de cicatrização, são elas que estimulam a cascata de coagulação e liberam grânulos os quais estão repletos de fatores de crescimento (Campos et al., 2007; Oliveira & Dias, 2012). Os fatores classificados como mitogênicos estão diretamente relacionados ao aumento da população de células cicatriciais, levando a uma melhora no acesso das células inflamatórias na área da lesão, do mesmo modo que na angiogênese, fibroplasia e regeneração da pele (Maia & Souza, 2009).
O plasma rico em plaquetas (PRP) é um concentrado derivado do sangue total, muito utilizado no tratamento de afecções na medicina, que contém cerca de cinco vezes mais plaquetas que os níveis fisiológicos (Maia & Souza, 2009). Castillo et al. (2011) afirmaram que o PRP consegue reduzir o tempo de recuperação, principalmente, em razão da sua alta concentração de fatores de crescimento que tendem a melhorar o processo de reação tecidual.
Apesar de o PRP ser aplicado de forma muito vasta e disseminada em diversas áreas da medicina humana, na medicina veterinária esse procedimento é considerado relativamente recente. Visando avaliar sua utilização neste âmbito e melhorar o aproveitamento desta técnica o objetivo deste estudo foi realizar a aplicação local de PRP bovino em suínos submetidos à castração cirúrgica, avaliando seu potencial terapêutico nas lesões provocadas pelo processo de castração e possíveis reações geradas ao aplicar plasma rico em plaquetas entre espécies distintas.
Material e métodos
O projeto foi realizado durante julho de 2021 a março de 2022, nas dependências do Instituto Federal Catarinense – Campus Araquari/SC (26°23'41.6"S 48°44'17.9"W), nas Unidades de Ensino e Aprendizagem (UEA) bovinocultura e suinocultura, e no Centro de Práticas Clínicas. A execução foi previamente aprovada pelo Comitê de Ética no Uso de Animais (nº 365/2021) da mesma instituição.
Obtenção do plasma rico em plaquetas (PRP)
Para a obtenção do PRP foram coletadas amostras sanguíneas de sete bovinos, sendo que a coleta foi realizada por meio da veia caudal, com auxílio do vacutainer, do qual cada animal forneceu em média oito mL de sangue. O sangue total foi coletado e armazenado em tubos à vácuo, contendo anticoagulante a base de citrato de sódio a 3,2%, respeitando-se a proporção volumétrica de 1:9.
Essas amostras foram identificadas, armazenadas sob condições adequadas e encaminhadas ao Centro de Práticas Clínicas para processamento. A técnica utilizada como base para a obtenção do PRP foi descrita por Shin et al. (2017) sendo baseada em um protocolo de centrifugação em duas etapas. Os tubos contendo as amostras foram submetidos a uma centrifugação primária, em uma centrifuga (Daiki, analógica 80-2B) a 3.000 RPM por 20 minutos. Após esta primeira centrifugação os tubos se apresentaram sedimentados em plasma, capa leucocitária e hemácias.
Destes tubos, foram pipetadas a capa leucocitária e 1/3 do plasma formado e transferidos a novos tubos, foram utilizados tubo falcon sem anticoagulante e identificados. Estes tubos passaram por uma segunda e última centrifugação por 15 minutos na mesma centrífuga anteriormente utilizada. Por fim, obteve-se em cada tubo o plasma pobre em plaquetas e botão eritrocitário. De cada amostra foram pipetados e desprezados 2/3 do plasma pobre em plaquetas, o plasma restante foi disposto em eppendorfs e homogeneizado manualmente. Antes da sua aplicação o PRP foi ativado com 1mL de cloreto de cálcio a 10%.
Aplicação do PRP
Para aplicação do PRP foram selecionados 24 leitões, machos, com cinco dias de idade, criados em um sistema semi-intensivo e alojados em gaiolas parideiras no setor maternidade da UEA suinocultura. Os leitões foram distribuídos aleatoriamente em dois tratamentos com 12 animais cada, sendo o grupo G1 o controle, e o G2 o grupo que recebeu a aplicação do PRP. A distinção dos grupos ocorreu através de bastões marcadores, sendo que a marcação foi reforçada diariamente.
Os agrupamentos G1 e G2 foram submetidos ao processo de castração cirúrgica conforme protocolo adotado pela UEA, que se baseia na utilização de anestesia local com lidocaína 2%, aplicada intratesticular, seguido de incisão na rafe escrotal para exposição dos testículos acompanhado de abertura da túnica, corte do canal do epidídimo e debridamento dos vasos. A cicatrização da incisão ocorre por segunda intenção. Todo o processo foi realizado sobre anestesia, antissepsia e contenção do animal seguindo as recomendações de bem-estar da UEA.
Finalizado o processo de castração, os animais G1 foram alocados em sua baia de origem e sem a administração de fármaco sistêmico ou local. Já os animais G2 receberam a aplicação de PRP no local da incisão. Neste mesmo grupo, uma segunda aplicação de PRP foi realizada 24 horas após a primeira administração e os animais foram novamente demarcados com os bastões. Ambas as aplicações foram manuais com a utilização de luvas estéreis, o PRP foi aplicado sobre todo o local da incisão, não havendo uma quantidade determinada, visando a aplicação tópica sobre toda ferida. Os leitões foram acompanhados por 3 dias para avaliar o processo de cicatrização da incisão.
Coleta e análise de dados
Os três dias de avaliação foram discriminados em: dia 0 onde foram realizadas as castrações, as avaliações das incisões e aplicação de PRP (Figura 1A), dia 1 (24h após a castração) onde houve uma nova avaliação (Figura 1B) e aplicação de PRP e dia 2 (48h após a castração) onde ocorreu a última avaliação das incisões (Figura 1C).
Figura 1. Processo de cicatrização de leitão do grupo PRP. A) Animal no dia zero: castração e aplicação do PRP. B) Animal no dia 1: 24 h após a castração + segunda aplicação do PRP. C) Animal no dia 2: avaliação final.
A coleta dos dados se deu a partir de arquivos de imagem, e a eficiência da cicatrização das feridas foi convertida em um sistema numérico, onde foram avaliados no dia um e dois a presença de infecção, edema, vermelhidão, prurido e crosta, e classificados conforme o grau de intensidade, sendo 0 para ausente, 1: leve, 2: moderado e 3: intenso.
No dia 0 do experimento, optou-se por avaliar critérios distintos dos demais dias, sendo estes: regularidade de borda e presença de sangue na incisão. A escolha de diferentes critérios ocorreu porque os pontos avaliados nos dias um e dois são resultantes da atividade de polimorfonucleares na lesão, e o pico da atividade ocorre entre as 24 - 48 horas após o trauma (Tazima et al., 2008). Os dados obtidos foram submetidos à análise estatística (teste do qui-quadrado) sendo considerado P ≤ 0,05 para obtenção dos resultados e o Software utilizado foi o Jamovi.
Resultados e discussão
Foi observado que as lesões nos leitões do grupo G1 e G2 não apresentaram diferença quanto à presença de sangramento na lesão (P = 0.392). Cerca de 75% dos animais G1 não apresentaram sangramento após o procedimento (Tabela 1). Em contrapartida, 41,7% dos animais G2 apresentaram um leve sangramento após a castração e aplicação do PRP. A presença do sangramento no grupo G2 pode estar associada à manipulação da ferida fresca após a castração, já que os animais deste grupo receberam a aplicação tópica do PRP, e a manipulação da lesão pode ter acarretado um retardo na formação do coágulo sanguíneo, responsável por cessar o sangramento e formar uma barreira impermeabilizante que protege a ferida de agentes externos (Tazima et al., 2008).
Tabela 1. Presença de sangramento e regularidade de borda no dia zero para os grupos controle e PRP
As bordas das feridas se apresentavam afastadas e bem definidas em 100% dos animais avaliados no experimento. Esses critérios estão dentro do fisiológico para feridas que passaram pelo processo de cicatrização por segunda intenção (Campos et al., 2007).
Não houve diferença no princípio de infecção (P = 0.392), edema (P = 0.197), hiperpigmentação (P = 0.403) e formação de crosta (P = 0.309) durante o dia 1 de avaliação (Tabela 2). O mesmo foi observado no dia 2, onde não foram obtidas diferenças de infecção (P = 0.140), edema (P = 0.584), vermelhidão (P = 0.673) e crosta (P = 0.160). Portanto, a aplicação do PRP heterólogo não levou ao desenvolvimento de infecção nas feridas, ou seja, os parâmetros analisados se mantiveram estáveis entre os grupos avaliados. Mesmo o PRP sendo proveniente de uma espécie diferente da receptora, ele não provocou um processo inflamatório digno de nota.
Apesar disso, 58% dos animais que receberam o PRP, apresentaram sinais de infecção leve (presença de secreção purulenta em pouca quantidade) a moderada (secreção purulenta em média quantidade). O quadro de infecção surge quando o organismo hospedeiro entra em contato com microrganismos patógenos capazes de desenvolver doenças, promovendo uma resposta imune (Collins et al., 2000; Kumar et al., 2008). Um dos principais sinais de infecção é o surgimento de pus no local acometido (Tortora et al., 2017). Os princípios de infecção não estão relacionados a um único fator causal, estando relacionado a características individuais, sabendo-se que os animais que se apresentem hígidos possuem menor incidência (Morelli, 1996).
No entanto, é válido considerar que, os sinais de infecção podem estar associados à utilização de um plasma rico em plaquetas heterólogo, visto que, as plaquetas possuem antígenos em sua superfície e as amostras utilizadas para a produção do concentrado são incompatíveis com a espécie que recebeu a aplicação, fazendo com que os leitões fossem expostos a antígenos não próprios (Bianchi et al., 2012). Estudos em humanos observaram que as plaquetas possuem a expressão de antígenos imunogênicos, sendo estes associados a quadros de rejeições de transplantes alogênicos, aloimunizações e casos de refratariedade plaquetária (Ziza et al., 2021). No entanto, na veterinária esta questão ainda não é bem elucidada.
Os sinais de edema e hiperpigmentação podem estar relacionados à inflamação local. A inflamação é uma reação tecidual que visa livrar os organismos de injúria e suas consequências, sendo esta uma etapa do processo de reparação do tecido. A fase inflamatória da cicatrização é influenciada pelo aumento da permeabilidade vascular e consequente saída de líquidos para o espaço extravascular, além do aumento do fluxo sanguíneo local da região, levando a formação de edema e vermelhidão, estando estes associados geralmente a sinais como calor e rubor (Tazima et al., 2008). Conforme ocorreu à cicatrização da ferida, estes sinais foram reduzindo até desaparecerem por completo.
Foi observado que no dia um, que cerca de 100% dos animais que receberam a aplicação de PRP, apresentaram prurido, assim como observado nos animais do grupo controle. No entanto, o grupo PRP manifestou a presença de prurido em maior intensidade (P = 0,002). A presença do prurido é associada ao processo de cicatrização, já que prontamente após a lesão as células imunes inatas locais são capazes de iniciar uma resposta inflamatória na pele, um destes tipos celulares, os mastócitos respondem de forma muito rápida produzindo mediadores inflamatórios logo na primeira hora do estímulo (Turabelidze & Dipietro, 2011). Uma vez ativados, os mastócitos são capazes de degranular e liberar mediadores como histamina (Tazima et al., 2008). Por sua vez, a histamina é uma aminabiogênica vasodilatadora capaz de levar ao aparecimento de edemas, vermelhidão e coceira (Turabelidze & Dipietro, 2011).
Além disso, a intensidade do prurido em animais do grupo G2 pode estar associada também ao uso de amostras de sangue bovina para a produção do concentrado plaquetário, que como explicado anteriormente devido à presença de antígenos, pode levar ao desenvolvimento de uma resposta imunológica mais intensa nos leitões. No segundo dia de avaliação a presença e intensidade do prurido (P = 0.311) não foram significativas em ambos os grupos.
Tabela 2. Critérios avaliados nos grupos controle e PRP classificados conforme grau de intensidade no dia 1 e dia 2
Todos os sinais avaliados foram compatíveis com uma cicatrização fisiológica, e corroboram com Barrionuevo et al. (2015) que mencionaram a presença destes sinais até o pico de fase inflamatória diminuindo após esse período. A cicatrização foi semelhante entre G1 e G2, não havendo reações adversas significativas, assim como observado por Marques et al. (2017).
O plasma rico em plaquetas heterólogo tem sua importância, utilizado em situações que não se pode produzir o concentrado a partir do sangue do próprio paciente (Abegão et al., 2015). Em um estudo, Suzuki et al. (2013) utilizaram sangue heterólogo para produção de PRP devido à dificuldade de coleta em pequenos animais. Seu possível potencial efeito no processo de cicatrização é reforçado por Barrionuevo et al. (2015) que em seu estudo observaram que o PRP heterólogo, foi capaz de acelerar o processo de reparação tecidual, demonstrando seu potencial terapêutico. Apesar disso, novos estudos devem ser realizados na área.
Conclusões
O plasma rico em plaquetas heterólogo de origem bovina quando aplicado em incisões causadas pelo processo de castração cirúrgica de suínos não é o causador de infecção, edema, crosta, vermelhidão. Cerca de 24 horas após a aplicação do PRP tópico, no local da incisão, observou-se um maior prurido local. Não houve nenhuma complicação na cicatrização, além de a presença de prurido.
Publicado originalmente na revista PUBVET, em outubro de 2022. Acesso dispnível em:
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