A partir do ano 2004, um grupo de profissionais ligados à pesquisa e extensão rural, percebeu que o processo de transferência de tecnologia não estava sendo eficiente em contribuir para a melhoria dos sistemas de produção de base familiar ocorrentes na Região Noroeste do Rio Grande do Sul, cuja maioria tem como base a produção leiteira. Percebeu-se que na realidade havia um distanciamento entre pesquisa, extensão e produção, e, em muitos casos, o conhecimento técnico-científico sistematizado não era suficiente para solucionar problemas constatados em diferentes situações reais de produção, muitas vezes com grandes limitações para a agropecuária. Consideraram-se como as principais razões desses problemas (1) a realização de pesquisas de forma isolada, nos centros institucionais, geralmente em boas condições experimentais, diferentemente da realidade de muitas propriedades rurais; (2) enfoque unicamente em aspectos técnicos e econômicos, visando proporcionar maior produtividade/renda ao agricultor, e, portanto, não contemplando questões sociais, culturais, ambientais, etc...; e (3) várias tecnologias difundidas não estavam sendo adequadas aos diferentes tipos de sistemas de produção, considerando a grande diversidade de características e organização desses sistemas pelas famílias que trabalham e vivem no meio rural, e, portanto, não eram eficientes para superar as limitações existentes.
A partir do problema verificado, percebeu-se que era necessário construir um processo mais eficiente não somente na geração de conhecimento e tecnologias adequadas a diferentes tipos de sistemas produtivos, mas principalmente na forma de atuação da pesquisa e extensão, ocorrendo de maneira mais conectada à realidade da região, rompendo o paradigma existente. Assim, poderia se favorecer a apropriação dos resultados/tecnologias pelos agricultores, traduzindo-os em práticas e processos com impactos positivos nos sistemas de produção. Era necessário também que os trabalhos fossem realizados com uma abordagem sistêmica, com objetivo não somente de atingir maior produtividade e renda agropecuária, mas também relevando aspectos sociais e ambientais, e o contexto regional atual e histórico no qual a unidade de produção está inserida. Enfim, precisava-se de uma nova metodologia, que potencializasse o trabalho das diversas instituições que têm como missão promover o desenvolvimento regional.
A aproximação de pesquisadores e extensionistas permitiu reflexões conjuntas, visando construir um trabalho com objetivos comuns, e então adotou-se a metodologia de "pesquisa-desenvolvimento", ou seja, um processo cíclico e participativo no qual se busca constatar e compreender o contexto produtivo rural e a lógica de produção nas diferentes unidades, a partir da interação com os agricultores. Desta forma, podem-se gerar conjuntamente proposições de redesenho visando conferir maior sustentabilidade e garantir a reprodução da unidade produtiva rural. Para tanto, valoriza-se não somente o conhecimento técnico-científico acumulado, mas também o conhecimento local, empírico, já que ambos devem servir de base para as propostas de intervenção nos sistemas. Além disso, as demandas para novas pesquisas podem ser identificadas com mais clareza, e os resultados aplicados mais rapidamente, pois não existe a priori uma separação temporal nem espacial entre geração, transferência e utilização/apropriação de tecnologias.
Criou-se então o Programa em Rede de Pesquisa-Desenvolvimento em Sistemas de Produção com Pecuária de Leite na Região Noroeste do Rio Grande do Sul, chamado posteriormente de Rede Leite, que reúne hoje nove instituições de pesquisa, extensão e cooperativas de agricultores familiares. A partir de 2006 foram estabelecidas Unidades de Observação – UOs, sendo pelo menos uma (1) em cada município de abrangência da Emater Regional de Ijuí, totalizando hoje mais de 50 famílias acompanhadas pela equipe de trabalho. Desde então, vem ocorrendo ações de observação e avaliação dos sistemas produtivos, reuniões de planejamento/problematização, e eventos técnicos/demonstrativos envolvendo outros agricultores da região. Outra base operacional do trabalho são as Unidades de Experimentação Participativa – UEPs, onde se realizam pesquisas com diferentes enfoques, especialmente tratando de pastagens, solos e produção animal, a partir das demandas identificadas conjuntamente. Essas áreas estão localizadas nas organizações que integram a Rede Leite, como universidades, instituições de pesquisa, e as próprias UOs. Assim, mobilizam-se as estruturas já existentes em prol de objetivos comuns, conectando ações e projetos, evitando a sobreposição de esforços, e garantindo uma atuação mais eficiente.
Considera-se, inicialmente, que a própria consolidação e fortalecimento da Rede Leite é o principal resultado do trabalho, já que não é fácil comprometer diferentes instituições em torno de objetivos comuns, e com a parceria concreta de agricultores familiares. Conforme o processo avança, as ações e os resultados vão se multiplicando. Elaborou-se um zoneamento agroecológico da produção leiteira na região, uma tipologia dos sistemas de produção, e uma discussão sobre os principais problemas/limitantes enfrentados pelos agricultores. Ademais, tem-se um banco de dados com inúmeros indicadores da atividade e das unidades produtivas, o qual pode servir de referência para projetos de desenvolvimento e políticas públicas para o setor. Hoje, poder-se-ia apontar inúmeros casos de melhoria de processo produtivos, concorrendo não somente para aumentar significativamente a renda, mas também trazer mais qualidade de vida e satisfação às famílias. Outra questão que merece destaque é a rapidez com que se consegue responder a determinadas questões que angustiam os agricultores, pois eles mesmos são membros da equipe, e, portanto, a troca de informações e a construção do conhecimento ocorrem de forma mais ágil e rápida. Certamente muitos agricultores mudaram a forma de ver a própria realidade, sentindo-se valorizados e com maior autonomia para decidir e encaminhar o seu futuro; esse resultado é muito difícil de ser mensurado, mas é um dos mais importantes do trabalho, base do processo.
Em 2011 a Rede Leite foi certificada pela Fundação Banco do Brasil como Tecnologia Social, o que, além do importante reconhecimento, abre novas oportunidades de trabalho. Além disso, várias experiências da Rede Leite serviram de base para a concepção do Programa Leite Gaúcho do Governo do Estado. Outro programa em rede está se constituindo na região de Santa Rosa-RS tendo na Rede Leite sua principal motivação e apoio metodológico para desencadear o processo de articulação interinstitucional e construção coletiva do conhecimento. Enfim, pode-se afirmar que existe hoje na Região Noroeste do Rio Grande do Sul uma nova proposta para gerar desenvolvimento, que surgiu na base de trabalho com os agricultores e que vêm se fortalecendo com o comprometimento de diversas instituições públicas e de caráter comunitário, servindo de referência para outros vários projetos e programas.
***Fonte Original: XV Fórum de Produção Pecuária-Leite | Anais.