1 INTRODUÇÃO
As doenças hemorrágicas e vesiculares em animais de produção podem estar associadas a um grupo de vírus que possuem relevância sanitária, econômica e de saúde pública, além de constituírem diagnóstico diferencial para a febre aftosa. Dentre esses, destacam-se alguns agentes zoonóticos que, ocasionalmente, afetam trabalhadores rurais, como ordenhadores e pessoas que tem contato próximo com animais infectados. A febre aftosa é considerada a doença vesicular mais importante, pois causa embargo econômico para o país que exporta produtos de carne bovina, causando perdas significativas (ALONSO et al., 2020).
O parapoxvírus bovino 2 [Pseudocowpox virus (PCPV) ou vírus da pseudovaríola bovina] é um dos dois parapoxvírus (PPVs) de bovinos, juntamente com o vírus da estomatite papular bovina (Parapoxvirus bovis 1 - BPSV). Duas outras espécies virais, o vírus da Orf de ovinos e caprinos (Parapoxvirus ovis - ORFV) e o parapoxvírus do cervo vermelho da Nova Zelândia (Parapoxvirus of red deer in New Zealand - PVNZ), completam o gênero Parapoxvirus, subfamília Chordopoxvirinae da família Poxviridae (ICTV, 2020).
Os PPVs são vírus epiteliotrópicos, distribuídos mundialmente e associados com doenças cutâneas não sistêmicas, vesiculares e eruptivas em mamíferos domésticos e selvagens, especialmente ruminantes (FLEMMING; MERCER, 2007). Infecções naturais pelo PCPV geralmente cursam com lesões pápulo-vesico-pustulosas nos tetos e úbere de vacas leiteiras e lesões focinho-orais em bezerros que se alimentam de vacas afetadas (ALONSO et al., 2020). Espécies de PPV (PCPV, BSPV e ORFV) exibem um espectro estreito de hospedeiros e podem ocasionalmente ser transmitidas para humanos, causando lesões localizadas nas mãos, geralmente chamadas de nódulo do ordenhador ou pseudovaríola (BÜTTNER; RZIHA, 2002).
Casos naturais ou surtos de doenças associadas ao PCPV têm sido descritos em todo o mundo, geralmente associados a lesões mucocutâneas leves e autolimitantes em bovinos (LEDERMAN et al., 2014) (VELAZQUEZ-SALINAS et al., 2018). Além disso, casos atípicos (BLOMQVIST et al., 2018) e infecções mistas com outros poxvírus também foram descritos (LAGUARDIA-NASCIMENTO et al., 2017). Os impactos sanitários e econômicos da infecção por PCPV para os bovinos permanecem incertos, provavelmente devido à sua ocorrência esporádica/rara e curso clínico leve. No Brasil, vários casos/surtos de doenças associadas ao PCPV (e outros PPVs também) foram relatados nas últimas décadas, afetando vacas leiteiras, bezerros e, ocasionalmente, humanos (ALONSO et al., 2020). Em algumas regiões brasileiras, as infecções por PPV em bovinos leiteiros são relativamente frequentes e causam algumas perdas econômicas a esses rebanhos, representando um risco ocupacional para os seres humanos (CARGNELUTTI et al., 2012). Uma questão importante em relação à doença associada ao PPVs reside na sua semelhança com outras doenças vesiculares de bovinos, necessitando de diagnóstico diferencial, principalmente da febre aftosa.
A maioria dos relatos de PCPV publicados até o momento descreve casos/surtos clínicos, frequentemente associados à identificação do agente por microscopia eletrônica e/ou por técnicas moleculares. Aqui descrevemos uma infecção experimental de PCPV em bezerros, hospedeiros naturais do vírus. Os resultados aqui apresentados contribuem no esclarecimento da biologia da infecção por PCPV e sugeram aspectos importantes da patogênese do vírus que podem ser relevantes para o reconhecimento, controle e prevenção da doença.
Uma vez evidenciada a importância de diagnóstico diferencial de doenças de alto impacto econômico, temos também uma segunda enfermidade, a peste suína africana (PSA ou African swine fever - ASF). A PSA é uma doença que tem ocasionado perdas drásticas para a suinocultura de vários países. A disseminação do vírus da PSA pela Ásia, Europa e, recentemente, na América Central gerou um alerta significativo para a indústria global de carne suína. Em recente relatório da FAO (2019), os surtos de PSA em curso resultaram no abate de mais de seis milhões de animais em vários países.
A doença é causada pelo African swine fever virus (ASFV), gênero Asfivirus, pertencente à família Asfarviridae. Esse agente possui semelhanças estruturais (arquitetura e composição dos vírions, tipo e topologia do DNA genômico) e biológicas com vírus da família Poxviridae, dentre eles o poxvírus suíno (Swinepox virus - SPV) (DIXON et al., 2013). Embora permaneça uma questão de debate, a ordem provisória de Megavirales conteria, entre outras famílias, as famílias Asfarviridae e Poxviridae (ANDRÉS et al., 2020; ICTV, 2020).
Devido à PSA ser uma doença emergente de grande importância na suinocultura, o uso do SPV como substituto/modelo do ASFV em alguns estudos pode ser alternativa para determinados aspectos da PSA em países livres da PSA, já que além de compartilhar certas semelhanças morfológicas e biológicas, esses vírus possuem semelhanças com relação à resistência ambiental (SMITH, 2007). Dessa forma, devido ao grande impacto e à impossibilidade de se trabalhar com o vírus causador da PSA em território livre desta doença, optou-se por utilizar o SPV como substituto, que possui distribuição mundial e apresenta similaridades na replicação e resistência ao meio ambiente em relação ao ASFV.
A inoculação do SPV foi realizada por via intrafemoral, devido ao nível de calcificação do fêmur, sendo uma das estruturas mais tardias a se decompor e, portanto, permitiu a recuperação da amostra ao longo dos 12 meses do projeto. Na sequência, um segundo estudo, porém in vitro, onde foi avaliado a viabilidade de SPV, Senecavírus A (SVA) e vírus da diarreia viral bovina (BVDV) em tecidos de medula óssea enriquecidos, mantidos a 21-23ºC por um período de 30 dias. Dessa forma, conseguimos isolar os fatores ambientais e avaliar um possível interferência da medula óssea no vírus, dando suporte para a avaliação um novo modelo de inativação viral a campo.
2 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
2.1 Parapoxvírus bovino 2
2.1.1 Propriedades gerais
O PCPV é o agente de uma doença vesico-papular erosiva das superfícies mucocutâneas de bovinos (BÜTTNER; RZIHA, 2002), sendo um dos dois PPVs de bovinos, juntamente com o BPSV. Juntamente com o vírus Orf e o PVNZ completam o gênero Parapoxvirus, subfamília Chordopoxvirinae, família Poxviridae (ICTV, 2020). Os parapoxvírus (FIGURA 1) são vírus grandes, envelopados, em forma de tijolo, com genoma de DNA de fita dupla. O genoma linear é flanqueado por sequências de repetição terminal invertida (inverted terminal repeat - ITR) que são covalentemente fechadas em suas extremidades (ICTV, 2020).
A membrana de superfície exibe filamentos e existem duas partículas virais infecciosas distintas: o vírus maduro intracelular (intracellular mature virus - IMV) e o vírus envelopado extracelular (extracellular enveloped virus - EEV) (Figura 1).
A densidade flutuante de vírions está sujeita a influências osmóticas: em tampões diluídos é de cerca de 1,16 g cm−3, em sacarose cerca de 1,25 g cm−3 e em CsCl e tartarato de potássio cerca de 1,30 g cm−3. Os vírions tendem a se agregar em solução com alto teor de sal. A infectividade viral de alguns membros do Poxviridae é resistente à tripsina. Alguns membros são resistentes ao éter. Geralmente, o vírion é sensível a detergentes comuns, formaldeído, agentes oxidantes e temperaturas superiores a 40°C. A membrana da superfície do vírion é removida por detergentes não iónicos e reagentes redutores de sulfidrilo. Os vírions são relativamente estáveis em condições secas à temperatura ambiente; eles podem ser liofilizados com pouca perda de infectividade (FENNE, 2017).
As proteínas constituem cerca de 90% do peso das partículas. Os genomas codificam 150–300 proteínas dependendo da espécie; cerca de 100 diferentes proteínas estão presentes nos vírions. As partículas de vírus contêm muitas enzimas envolvidas na transcrição de DNA. Os vírions envelopados possuem polipeptídeos na bicamada lipídica, que envolve a partícula.
Em geral, as proteínas conservadas essenciais para a replicação do vírus em cultura (polimerases e outras enzimas e proteínas estruturais) são codificadas na região central do genoma, enquanto as proteínas menos conservadas e não essenciais envolvidas nas respostas vírus-hospedeiro são codificados nas regiões terminais do genoma. Por exemplo, o vírus canaripox codifica 51 proteínas da família de repetição da anquirina (FENNE, 2017). Os lipídios constituem cerca de 4% do peso das partículas. Os vírions envelopados contêm lipídios, incluindo glicolipídios, que podem ser lipídios celulares modificados. Os carboidratos constituem cerca de 3% do peso das partículas. (FLEMMING; MERCER, 2007).
2.1.2 Impacto econômico e sanitário
Os impactos sanitários e econômicos da infecção por PCPV para o gado permanecem amplamente incertos, provavelmente devido à sua ocorrência esporádica/rara e curso clínico leve. No Brasil, vários casos/surtos de doenças associadas ao PCPV (e outros PPVs também) foram relatados nas últimas décadas, afetando vacas leiteiras, bezerros e, ocasionalmente, humanos (CARGNELUTTI et al., 2012; DE SANT’ANA et al., 2013; LAGUARDIA-NASCIMENTO et al., 2017; ALONSO et al., 2020).
A infecção pelo poxvírus está distribuída em todo o mundo e afeta principalmente vacas leiteiras, mas apresenta importância sanitária e econômica limitada na maioria dos países. Em alguns laticínios, no entanto, a infecção pode assumir alguma importância econômica devido às más condições de higiene. O agente geralmente é introduzido nos rebanhos por meio de animais infectados e se dissemina lentamente entre os animais. A transmissão dentro dos rebanhos ocorre por contato direto e indireto. A rota direta inclui a amamentação de bezerros e a indireta através de moscas, equipamentos de ordenha e manejo inadequados (MUNZ, E; DUMBELL, 1994).
Provavelmente devido à sua ocorrência esporádica e curso clínico leve, a infecção por PCPV tem chamado pouca atenção e as publicações e, consequentemente, o conhecimento sobre a biologia e patogênese da infecção por PCPV são escassos. Em algumas regiões brasileiras, as infecções por PPV em bovinos leiteiros são relativamente frequentes e causam algumas perdas econômicas a esses rebanhos, representando um risco ocupacional para os seres humanos (LAGUARDIANASCIMENTO et al., 2017). Além disso, a importância da infecção pelos PPV e outras doenças vesiculares reside principalmente na sua natureza vesicular, exigindo diagnóstico diferencial imediato da febre aftosa e no risco de saúde pública e falta de conhecimento do sistema de saúde em identificar a lesão (ALONSO et al., 2020).
2.1.3 Patogenia
Infecções por PPVs têm sido descritas em todo o mundo e estão associadas a doenças mucocutâneas não sistêmicas em mamíferos domésticos e selvagens, especialmente ruminantes. Infecções naturais por PCPV geralmente cursam com lesões vesico-papulares nos tetos e úbere de vacas leiteiras e lesões focinho-orais em bezerros que se alimentam de vacas afetadas. Espécies de PPVs geralmente apresentam uma faixa estreita de hospedeiros, mas podem ocasionalmente ser transmitidas para humanos, causando lesões localizadas nas mãos. A infecção humana pelo PPV é geralmente ocupacional, afetando ordenhadores ou outras pessoas em contato com animais afetados – causando lesões chamadas de “nódulo de ordenhador” ou pseudovaríola (ALONSO et al., 2020) .
As infecções por PCPV são diagnosticadas pela avaliação clínica das lesões da pele e mucosas juntamente com microscopia eletrônica ou análises imunohistoquímicas, isolamento e/ou detecção de genoma viral por reação em cadeia da polimerase (polymerase chain reaction - PCR). As infecções são geralmente autolimitadas após 1 a 6 semanas, mas no caso de superinfecções bacterianas podem resultar em lesões ulcerativas e necrosantes graves. Sinais clínicos são mais comumente observados em bezerros de 2 a 10 meses de idade (YAEGASHI et al., 2013).
No Brasil, vários casos/surtos de doença associada de PPVs foram relatados nas últimas décadas, afetando vacas leiteiras, bezerros e, ocasionalmente, o homem. A doença geralmente é benigna, com lesões que progridem através do estágio papular para formar pústulas em poucos dias. Essas lesões dão origem a úlceras e, posteriormente, tornam-se espessas formando crostas sobrejacentes, que se descamam por volta de 4 a 6 semanas. Tais casos podem ser consideradas com lesões menos sérias, ou até mesmo auto limitantes, mas também no entanto, se a infecção viral for acompanhada por uma coinfecção bacteriana, como estafilococos, estreptococos ou corinebactérias, a taxa de mortalidade pode se aproximar de 90% (FLEMING et al., 2017).
Casos naturais ou surtos de doenças associadas a infecções por PCPV têm sido descritos em vários países, geralmente associados a lesões mucocutâneas leves e autolimitadas em bovinos, como foi o caso de estudo retrospectivo de todos os casos de poxvírus diagnosticados e notificados em bovinos no Distrito Federal (DF), entre 2015 e 2018, onde envolveu 385 fazendas, abrigando um total de 23.963 bovinos dos quais 2.467 (10,29%) foram examinados. Noventa e três animais apresentaram lesões sugestivas e/ou compatíveis com poxvírus. Cinquenta e dois casos foram diagnosticados como associados a poxvírus (47 e 5 por vigilância ativa e passiva, respectivamente): 27 como vaccínia bovina (BV), 9 como (PCPV), 8 como BPSV, 5 como coinfecção (PCPV e BPSV) e 3 como um parapoxvírus não identificado (ALONSO et al., 2020).
Há casos considerados atípicos, onde foi descrito um surto de pseudocowpox com um quadro clínico incomum em um rebanho leiteiro de 80 vacas em free-stall. Aproximadamente 90% das vacas apresentaram vesículas, erosões, pápulas e crostas na vulva e na mucosa vaginal. A análise histológica dos tecidos da biópsia indicou uma infecção viral primária, embora não especificada. A microscopia eletrônica de transmissão revelou partículas de parapoxvírus em tecidos e materiais vesiculares, as análises confirmaram a ausência de outras causas potenciais de vulvovaginite pustulosa, como herpesvírus bovino 1 e Ureaplasma diversum. Suspeita-se que uma escova de vaca rolante tenha sido o fômite (BLOMQVIST et al., 2018).
Em casos de infecções mistas, há relato de detecção de DNA de PPV em amostras de leite de vacas afetadas, indicando que o vírus pode estar presente no leite e potencialmente contaminando produtos lácteos associados ou não ao Orthopoxvirus (OPXV). Além das lesões causadas pelo contato direto, a presença de 2 ou mais espécies de poxvírus no leite mostrou que o efeito das doenças exantemáticas zoonóticas na saúde pública e na pecuária é relevante e não pode ser negligenciado (REHFELD et al., 2018).
Há relatos de infecção de outras espécies animais, que teve como principal objetivo detectar BSPV, PCPV e VACV, onde 89 amostras foram recebidas no Laboratório Oficial do Ministério da Agricultura do Brasil, onde surtos de poxvírus foram detectados em nove estados: Amazonas, Bahia, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Roraima, São Paulo e Tocantins. A maioria das amostras foi positiva para apenas um vírus nos testes moleculares, mas houve um número significativo de coinfecções por PCPV/BSPV, PCPV/VACV, BSP/VACV e PCPV/BSPV/VACV (LAGUARDIA-NASCIMENTO et al., 2017).
2.2 Poxvírus suíno como modelo para ASFV
2.2.1 Vírus da peste suína africana (ASFV)
Os vírions do PSA consistem em estruturas centrais de nucleoproteína, de 70 a 100 nm de diâmetro, envoltas por uma camada lipídica interna e um capsídeo icosaédrico, de 170 a 190 nm de diâmetro, que por sua vez é circundado por uma camada lipídica externa contendo envelope. O capsídeo exibe simetria icosaédrica (T = 189-217) correspondendo a 1892-2172 capsômeros. Cada capsômero tem 13 nm de diâmetro e aparece como um prisma hexagonal com um orifício central; a distância intercapsomérica é de 7,4–8,1 nm. Uma membrana interna envolve o núcleo que reveste o nucleoide contendo ácido nucleico (SALAS; ANDRÉS, 2013). Os vírions envelopados extracelulares têm um diâmetro de 175–215 nm (Figura 2).
Figura 2. Estrutura do Asfivirus
(a) Diagrama do vírus da peste suína africana mostrando nucleóide, camada central interna, membrana interna, capsídeo e envelope externo. (b) imagem por microscopia eletrônica (ME) de vírions extracelulares. A seta preta mostra o envelope externo, a seta branca mostra o capsídeo. Barra = 200 nm. (c) imagem de ME de vírions intracelulares. IM = vírion imaturo, M = vírion maduro. A seta preta mostra a proteína do capsídeo, a seta branca mostra a membrana do vírus. Barra = 200 nm. (d) imagem ME de vírions intracelulares. A seta preta mostra a proteína do capsídeo, a seta branca mostra a membrana do vírus. Barra = 200 nm. Fonte: Pippa Hawes, The Pirbright Institute, Reino Unido.
Os vírions são sensíveis ao éter, clorofórmio e desoxicolato, e são inativados a 60°C em 30 minutos, podendo manter sua viabilidade por anos a 20°C ou 4°C. A infectividade é estável em uma ampla faixa de pH. Alguns vírus infecciosos podem manter-se viáveis ao tratamento em pH4 ou pH13. O vírus é sensível a alguns desinfetantes (formaldeído a 1% por 6 dias, NaOH a 2% por 1 dias); onde os parafenilfenólicos são muito eficazes, assim como à irradiação (ALONSO et al., 2018).
O genoma consiste em uma única molécula de dsDNA linear, covalentemente fechado, de 170-194 kbp. As sequências finais estão presentes como duas formas de flip-flop que são invertidas e complementares uma em relação à outra, e adjacentes a ambas as extremidades estão arranjos idênticos de unidades de 2,1 kbp repetidas diretamente. As sequências nucleotídicas completas de 18 isolados foram determinadas. Estes incluem o isolado Ba71V adaptado para cultura de tecidos (ASFV-BA71V) e 17 isolados de campo da Europa e África (CHAPMAN et al., 2008; DE VILLIERS et al., 2010, DANZETTA et al., 2020; PORTUGAL et al., 2015; CHAPMAN et al., 2011).
2.2.2 Poxvírus suíno
O poxvírus suíno (SPV), do gênero Suipoxvirus, pertence à família Poxviridae. Essa família inclui a subfamília Chordopoxvirinae, na qual também estão os gêneros como Orthopoxvirus, Parapoxvirus, Avipoxvirus, Capripoxvirus, Leporipoxvirus, Suipoxvirus, Molluscipoxvirus e Yatapoxvirus, assim como subfamília Entonopoxvirinae, compreendendo gêneros como Alphaentompoxvirus, Betaentompoxvirus, Deltaentompoxvirus e Gammaentompoxvirus (FIGURA 3) (BECKER; MOYER, 2007; ICTV, 2020).
Figura 3. Estrutura do Suipoxvirus
Estrutura do vírions do SPV: são vírions envelopados, em forma de tijolo, com cerca de 300x250x200nm, com DNA genômico de cerca de 175 kbp de tamanho com repetições terminais invertidas de cerca de 5 kbp, assim como Asfivirus. Fonte: https://viralzone.expasy.org/154
Os vírions são produzidos em dois tipos de partículas virais infecciosas distintas: o vírus maduro intracelular (IMV) e o vírus envelopado extracelular (EEV) (FENNE, 2017). A densidade flutuante do vírion está sujeita a influências osmóticas: em tampões diluídos é de cerca de 1,16 g cm−3, em sacarose cerca de 1,25 g cm−3 e em CsCl e tartarato de potássio cerca de 1,30 g cm−3. Os vírions tendem a se agregar em solução com alto teor de sal. A infectividade de alguns membros é resistente à tripsina. Alguns membros são insensíveis ao éter. Geralmente, a infectividade do vírion é sensível a detergentes comuns, formaldeído, agentes oxidantes e temperaturas superiores a 40°C. A membrana da superfície do vírion é removida por detergentes não iónicos e reagentes redutores de sulfidrilo. Os vírions são relativamente estáveis em condições secas à temperatura ambiente; eles podem ser liofilizados com pouca perda de infectividade (ICTV, 2020).
O genoma é uma única molécula linear de dsDNA covalentemente fechada, com 130-375 kbp de comprimento. Os ácidos nucleicos constituem cerca de 3% do peso das partículas. As proteínas constituem cerca de 90% do peso das partículas. Os genomas codificam 150–300 proteínas dependendo da espécie; cerca de 100 proteínas estão presentes nos vírions. As partículas de vírus contêm muitas enzimas envolvidas na transcrição de DNA ou modificação de proteínas ou ácidos nucleicos. Os vírions envelopados possuem polipeptídeos codificados por vírus na bicamada lipídica, que envolve a partícula. Os entomopoxvírus podem ser ocluídos por uma proteína estrutural principal codificada pelo vírus, a esferoidina. Da mesma forma, os cordopoxvírus podem estar dentro de corpos de inclusão novamente consistindo em uma única proteína (a proteína ATI de inclusão do tipo A). Em geral, as proteínas conservadas essenciais para a replicação do vírus em cultura (polimerases e outras enzimas e proteínas estruturais) são codificadas na região central do genoma, enquanto as proteínas menos conservadas e não essenciais envolvidas nas respostas vírus-hospedeiro (imunomoduladores, antiapoptóticos proteínas, etc.) são codificados nas regiões terminais do genoma. Várias grandes famílias de proteínas são codificadas dentro dos Poxviridae, em alguns casos com muitos membros (ICTV, 2020).
Devido ao grande impacto e à impossibilidade de se trabalhar diretamente com o ASFV em território livre desta doença, optou-se por trabalhar com o SPV, que é de distribuição mundial e apresenta similaridade de replicação, além de possuir resistência ao meio ambiente similar em relação ao Asfivirus.
2.3 MANEJO DE CARCAÇAS SUÍNAS EM LARGA ESCALA
O principal objetivo da deposição de carcaças é a inativação de agentes infecciosos, assim como a contenção do impacto ambiental devido à decomposição das carcaças. Tal problema não se restringe apenas ao setor agrícola, mas também a e outros setores da economia. O impacto econômico é difícil de calcular, pois vão desde custos diretos associados à vigilância, testes, avaliações, despovoamento, descarte, desinfecção e impactos no comércio internacional, assim como custos indiretos, que incluem os efeitos no consumidor, impactando na economia como um todo. Mudanças nos níveis de importação de produtos de origem animal fazem com que esse prejuízo seja ainda maior, o que faz pensar que o impacto econômico total de um surto provavelmente é subestimado (FLORY et al., 2017).
O descarte de carcaças por meio de depósitos de decomposição animal de baixa profundidade (AGB) já tem sido implementado com sucesso na inativação viral em carcaças ovinas (FLORY et al., 2017), porém surtos de doenças de animais de grande porte representam um desafio maior. As técnicas utilizadas até para conter os surtos como o de febre aftosa no Reino Unido em 2001 (TAYLOR, 2002), Taiwan (HSEU; CHEN, 2017), Japão (HAYAMA et al., 2012), Coréia do Sul (KIM; KIM, 2012), assim como os casos no Brasil em 2005 (CARVALHO et al., 2014), onde as valas seguem uma dimensão entre 3,5 a 4 metros de profundidade, 3 metros de largura e comprimento de acordo ao número de carcaças, agravam-se pelo ponto de vista público e sanitário, já que é significativa a preocupação em relação a contaminação de águas subterrâneas e demora na decomposição de carcaças quando enterradas nessa profundidade.
Os esforços de erradicação de doenças na Coréia do Sul resultaram na destruição de 20% do total de bovinos do país e na criação de 4700 locais de sepultamento (KIM et al., 2015). Esse enterro generalizado de carcaças resultou em preocupações sobre impactos ambientais maciços associados a esta atividade. Embora as investigações para caracterizar os impactos reais dessa atividade estejam em suas fases iniciais, muitos temem que os impactos ambientais, incluindo a contaminação do suprimento de água potável, durem por décadas (FLORY et al., 2017).
A falta de planos detalhados e específicos de descarte de carcaças, como parte de uma estratégia abrangente em resposta a surtos, pode resultar em atrasos nos esforços de sua erradicação. Um estudo de simulação de surto de febre aftosa na Califórnia concluiu que o atraso na resposta à detecção de 7 para 22 dias aumentou o número médio de rebanhos em quarentena de 680 para 6200 dias, bem como aumentou o custo médio do impacto econômico de US$ 2,3 bilhões para US$ 69 bilhões (CARPENTER et al., 2011).
Um estudo publicado pelo Departamento de Saúde do Reino Unido analisou o potencial impacto na saúde de vários métodos de descarte de carcaça (LONDON:DEPARTMENT OF HEALTH, 2001). Foram analisados os riscos específicos presentes durante os esforços de descarte de carcaça de febre aftosa e as vias associadas. O enterro profundo foi classificado como o método de eliminação de maior risco, com muitas vias de exposição diferentes, incluindo contato direto, solo e água contaminada, migração de gases para os edifícios além de que os riscos potenciais podem facilmente contaminar as fazendas e a água potável local.
Outro exemplo de doença infectocontagiosa que está em segundo lugar na lista de maiores desastres da produção animal (atrás apenas da Febre Aftosa) é a Peste Suína Africana (PSA), que apresentou recentemente um foco na República Dominicana, o qual foi diagnosticado no Laboratório de Diagnóstico de Doenças Exóticas do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). Além dos casos mais recentes, a doença já se faz presente em países como Georgia, Rússia, Belarus, Ucrânia, República Tcheca, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia e Romênia (NETHERTON et al., 2019), assim como na China, que já se espalhou para países vizinhos, incluindo, Mongólia, Vietnã, Camboja, Laos e Coreia do Norte, podendo ter consequências ainda mais desastrosas, já que a região é responsável por importante parte da produção mundial (SÁNCHEZ-CORDÓN et al., 2018).
Existem várias opções disponíveis para gerenciar altas mortalidades de diferentes espécies de animais de produção, como descarte em superfície, enterro, queima/incineração, renderização ou compostagem. O descarte em superfície envolve deixar os animais mortos na superfície da terra para se decompor pela exposição natural aos elementos ambientais em um local isolado. Embora exija pouca preparação, é apenas uma opção viável onde há vastas extensões de terra isolada, mas com consequentes problemas como transmissão de odores desagradáveis e parasitas, assim como conflitos com vizinhos e contaminação do suprimento de água dos demais animais. Já o enterro é uma opção cara, exigindo a escavação de grandes fossas e a subsequente contenção, gerenciamento e tratamento, com monitoramento contínuo para garantir que o lixiviado não polua as águas subterrâneas (EAMENS et al., 2011).
A queima/incineração massiva de carcaças, na propriedade ou fora dela, é geralmente impraticável, pois são necessárias grandes quantidades de material combustível. Além disso, a queima pode levar a emissões de poluentes químicos e partículas que podem afetar a qualidade do ar e a saúde pública. Por outro lado, a renderização que foi usada com sucesso no gerenciamento de carcaças de gado durante o surto de febre aftosa no Reino Unido, envolve o transporte dos animais potencialmente infecciosos por grandes distâncias até que chegue às instalações onde há os biodigestores, assim como envolve um grande custo e disponibilidade e capacidade para obtenção dessa tecnologia (EAMENS et al., 2011).
O AGB (Above ground burial) envolve a disposição de carcaças de animais em linhas, dentro de um sistema de enterro superficial no solo, e deixado in situ para se decompor. Essa técnica tem o potencial de resolver alguns dos problemas logísticos, práticos e ambientais associados a outras opções disponíveis para gerenciar a mortalidade ou destruição de animais de produção decorrentes de doenças exóticas ou desastres naturais. Se realizado corretamente, este sistema fornece contenção imediata da carcaça e cria temperaturas suficientes para inativar grande parte dos microrganismos presentes nas carcaças e nas fezes contaminadas (WILKINSON, 2007).
Como o AGB envolve um enterro superficial, apresenta menos ameaças às águas subterrâneas rasas ou lençóis freáticos profundos, reduzindo potenciais problemas de biosseguridade, assim como também pode ser elaborado rapidamente no local, usando máquinas agrícolas e materiais disponíveis na unidade de produção/fazenda. Assim, minimizam-se atrasos associados às opções que exigem o transporte de carcaças para instalações ou locais de descarte (GLANVILLE et al., 2004).
Os riscos e benefícios do AGB no gerenciamento de um grande número de carcaças animais em condições climáticas de acordo cada região são incertos e, dessa forma, devem ser testados. Deste modo, o presente trabalho visou validar a eficácia desse sistema em larga escala, utilizando o poxvírus suíno (SPV) como modelo de um surto de mortalidade de suínos por PSA. Tais procedimentos práticos de campo ainda não foram realizados e existem procedimentos operacionais ainda não publicados. Essa falta de conhecimento é vista como um grande impedimento ao uso desta técnica em uma possível ocorrência de um evento de surto de doença infectocontagiosa, principalmente de origem viral.