Introdução
A proteína tem papel fundamental na nutrição de ruminantes, não apenas pelo fornecimento de aminoácidos para o animal, mas também como fonte de N para síntese de proteína microbiana.
De acordo com o National Research Council (1996), as estimativas das exigências de proteína foram subdivididas em componentes animal e microbiano. Sabe-se que é de fundamental importância a síntese de proteína microbiana e, para que esta ocorra, é necessário que haja proteína degradável no rúmen (PDR), em quantidade e qualidade (NH3, peptídeos e aminoácidos; Russell et al., 1992) a fim de obter a máxima eficiência. As exigências de proteína estipuladas pelo National Research Council (1996) geralmente são superiores às de 1984 em virtude, principalmente, do componente microbiano.
As bactérias fermentadoras de fibras utilizam amônia como única fonte de N, e são altamente prejudicadas quando há deficiência de N no rúmen, levando a um menor desaparecimento da fibra, diminuindo a taxa de passagem e, conseqüentemente, diminuindo o consumo de matéria seca (Russell et al., 1992; Tedeschi et al., 2000). A amônia pode ser fornecida via uréia, embora, apresente alta solubilidade no rúmen, o que limita o seu uso. Talvez uma maneira de melhorar esse problema seja o emprego de complexos de liberação lenta de uréia (Owens & Zinn, 1988), como a amiréia, melhorando assim o fornecimento de amônia no rúmen e aumentando a síntese de proteína microbiana, o consumo de matéria seca, a digestibilidade da fibra e proporcionando um maior consumo de energia pelo animal, além de reduzir problemas com toxidez (Bartley & Deyoe, 1975).
O uso de dietas de alto teor de concentrado fornecido ad libitum é prática comum na indústria de gado de corte norte-americana. No Brasil, as dietas de animais em confinamento são tradicionalmente balanceadas com altas proporções de volumosos. Quando os preços dos concentrados são vantajosos, dietas com alto teor de concentrado têm se tornado viáveis economicamente, já que o ganho de peso é mais rápido, havendo redução nos custos de mão-de-obra e tornando a atividade mais rentável. Neste tipo de dieta, a fonte de volumoso tem como função estimular a ruminação e salivação, bem como formar uma malha de fibra no rúmen, aumentando o tempo de permanência do alimento. Este efeito é obtido pela chamada fibra íntegra (Bulle et al., 2002). Neste contexto, o bagaço de cana-de-açúcar in natura vem demonstrando ser uma fonte de fibra alternativa (Bulle et al., 2002).
O objetivo deste trabalho foi avaliar a substituição do farelo de soja por uréia ou amiréia na digestibilidade de nutrientes e alguns parâmetros ruminais em bovinos.
Material e Métodos
Foram utilizados seis garrotes mestiços da raça Nelore com cânula no rúmen, com peso médio inicial de 420 kg, distribuídos em um quadrado latino 3x3 duplicado. Os animais foram alojados em baias individuais cobertas, do tipo "tie stall" (1x2,2 m), providas de bebedouros automáticos e cocho para alimentação.
As dietas experimentais (Tabela 1) consistiram na substituição total da fonte de proteína verdadeira (farelo de soja), em uma dieta deficiente em proteína degradável no rúmen (PDR), por uréia ou amiréia (fonte de N não protéico de suposta liberação gradativa de N), ambas utilizadas em uma dieta adequada em PDR. Os tratamentos foram formulados para resultarem em dietas isoprotéicas e isoenergéticas, utilizando o programa do National Research Council (1996) de bovinos de corte.
As fontes de uréia utilizadas foram a uréia (adubo convencional) e a uréia extrusada, utilizando-se o milho como a fonte de amido (Amiréia 150S, Pajoara Indústria e Comércio, Campo Grande, MS).
Na hora do fornecimento da alimentação, o bagaço de cana-de-açúcar in natura (BIN) e o concentrado, nas suas respectivas proporções, foram misturados manualmente e fornecidos como ração completa duas vezes ao dia às 6 e 18 horas.
O período experimental foi de 84 dias, sendo os primeiros 30 dias destinados ao processo de adaptação dos animais às instalações e às dietas experimentais; e o restante do período foi segmentado em três subperíodos de 18 dias, destinando-se os 14 primeiros dias dos subperíodos para adaptação dos animais às novas dietas e os quatro últimos dias, à coleta de dados e amostras.
O alimento oferecido e o recusado foram pesados diariamente para determinação do consumo de matéria seca (MS) por animal/dia, durante os quatro últimos dias de cada subperíodo. Amostras de alimento oferecidas e sobras foram colhidas e compostas por animal e subperíodo e conservadas congeladas a -10ºC.
A digestibilidade aparente das dietas no trato gastrintestinal foi determinada por meio da utilização do óxido de cromo (Cr2O3), como marcador externo de indigestibilidade, sendo esse fornecido no rúmen duas vezes ao dia (5,0 g/dose a cada 12 horas), via cânula ruminal, iniciando-se dez dias antes do término das colheitas de cada período.
As amostras de fezes foram colhidas na porção final do reto, nos quatro últimos dias de cada subperíodo a cada oito horas, adiantando duas horas por dia, de maneira que se obtivesse uma amostra a cada duas horas, no intervalo de 24 horas depois do término dos quatro dias de colheita. As amostras foram compostas por animal e subperíodo e congeladas a -10ºC.
As amostras de alimento oferecido, sobra e fezes foram secadas em estufa com ventilação forçada (55oC) por 72 horas e moídas em moinhos do tipo Wiley, primeiramente, em peneira com crivos de 2 mm e, após, em peneira com crivos de 1 mm. Posteriormente, esta amostra voltou à estufa, por 12 horas a 105oC para determinação de matéria seca, de acordo com Silva (1990).
Na determinação do cromo, utilizou-se o método de fluorescência de raios X, no laboratório de Instrumentação Nuclear do Centro de Energia Nuclear na Agricultura, CENA-USP, descrito por Korndorfer et al. (2001).
A determinação da matéria mineral (MM), extrato etéreo (EE) e N foi realizada de acordo com a Association of Official Analytical Chemists (1990); fibra em detergente neutro (FDN) e fibra em detergente ácido (FDA), conforme Soest et al. (1991); não-seqüencial, utilizando amilase e sulfito de sódio nas determinações de FDN. O EE nas fezes foi determinado com éter de petróleo com 10% de ácido acético, para liberar os ácidos graxos (Mattos & Palmquist, 1974). A MO foi obtida pela subtração da MM da MS. Os carboidratos não fibrosos (CNF), pela fórmula: 100 -(FDN + PB + EE + MM), em que FDN é fibra em detergente neutro; PB é proteína bruta; EE é extrato etéreo e MM é matéria mineral.
As amostras de conteúdo ruminal foram colhidas no último dia de colheita de cada sub-período (décimo oitavo dia), com intervalos de duas horas entre cada colheita. Os horários de colheita foram determinados obedecendo aos horários da alimentação, sendo que a hora zero foi antes do fornecimento da dieta pela manhã e 2, 4, 6, 8, e 10 horas após o fornecimento da dieta.
As amostras de conteúdo ruminal foram colhidas em quatro pontos diferentes da cavidade e depois filtrada em duas camadas de tecido de algodão (fraldas), obtendo-se desta forma, aproximadamente 200 mL de fluido ruminal filtrado, utilizados na determinação imediata do pH de cada amostra, por meio de peagômetro digital. A seguir, foi retirada uma alíquota de 25 mL do fluido ruminal, acrescentando 1,25 mL de solução 6 N de HCl e conservando-a congelada a -10ªC para posterior determinação dos ácidos graxos voláteis (AGV).
Após o descongelamento, as amostras foram centrifugadas a 11.000 g a 4ºC, durante 20 minutos. A determinação dos AGV foi realizada segundo Palmquist & Conrad (1971), utilizando um cromatógrafo líquido gasoso, CLG (Hewlett Packard 5890, series II), equipado com HP integretor (Jewlett – Pacard Company, Avondale, PA). A temperatura do injetor, detector e coluna foi de 150, 190 e 115ºC, respectivamente.
A análise estatística da digestibilidade dos nutrientes foi realizada por intermédio do procedimento GLM do programa estatístico SAS Institute (1991). As variáveis pH e AGV foram analisadas como parcelas subdivididas no tempo e analisadas pelo PROC MIXED, que define as variáveis fixas e aleatórias para execução da análise. Os efeitos de tratamento animal e período foram testados com relação às parcelas. A interação horário de colheita x tratamentos foi testada com relação às subparcelas.
As médias das variáveis que obtiveram respostas significativas foram comparadas pelo teste de Tukey a 5% de probabilidade, pelo comando LSMEANS/PDIFF.
Resultados e Discussão
O tratamento com farelo de soja apresentou menor (P< 0,05) consumo de matéria seca em relação aos com N não-protéico (uréia e amiréia) (Tabela 2). O menor consumo de matéria seca no tratamento com farelo de soja possivelmente ocorreu por causa da menor fração de proteína degradável no rúmen.
Alterações no consumo ocorrem quando a quantidade de proteína dietética não é suficiente para produzir quantidade adequada de amônia ruminal, sendo importante conhecer as frações protéicas da proteína da dieta. Segundo os modelos National Research Council (1996) e CNCPS (Fox et al., 2000), o balanço de N no rúmen ficou negativo no tratamento com farelo de soja.
As bactérias fermentadoras de carboidratos fibrosos utilizam amônia como única fonte de N, e são altamente prejudicadas quando ocorre deficiência de N degradável no rúmen, levando a um menor desaparecimento dos carboidratos fibrosos, diminuindo assim, a taxa de passagem e, conseqüentemente, o consumo de matéria seca (Russell et al., 1992; Tedeschi et al., 2000).
Thompson et al. (1972), utilizando novilhos em crescimento, observaram resultados similares em relação ao consumo de matéria seca, quando compararam amiréia e uréia. Não verificaram, entretanto, alterações no consumo de matéria seca quando avaliaram fontes de N não-protéico (uréia e amiréia) com farelo de soja.
Stiles et al. (1970) sugeriram que a extrusão provoca a incorporação da uréia na estrutura do amido, promovendo melhor aceitabilidade do concentrado. Entretanto, isto não ocorreu no presente trabalho, em que o consumo de matéria seca do tratamento com uréia e amiréia foi similar.
A digestibilidade aparente da MS não diferiu (P> 0,05) entre os tratamentos. Resultados similares foram observados por Silva et al. (1994) em ovinos, e por Carmo (2001), em vacas leiteiras. Esses autores utilizaram as mesmas fontes nitrogenadas do atual trabalho. Silva et al. (2002) não observaram diferenças também na digestibilidade da MS e da MO, quando utilizaram farelo de soja (que possui proteína de média degradabilidade); amiréia (fonte de NNP) e farinha de subprodutos de abatedouro avícola (fonte de proteína de baixa degradabilidade), em novilhos confinados.
Da mesma forma, a digestibilidade da MO não diferiu entre os tratamentos (P> 0,05). Dados semelhantes foram obtidos por Silva et al. (1994), quando suplementaram ovinos com amiréia, uréia e farelo de soja.
A digestibilidade da FDN foi inferior (P< 0,05) no tratamento com farelo de soja, em que se obteve 15,6 e 14,9 unidades porcentuais (23,2% e 22,4%), inferiores aos tratamentos com uréia e amiréia, respectivamente (Tabela 2). A menor digestibilidade da FDN no tratamento com farelo de soja (deficiente em PDR) pode ter ocorrido em virtude da falta de amônia ruminal, prejudicando as bactérias fermentadoras de fibra, que podem ter provocado redução na taxa de passagem e, conseqüentemente, no consumo de MS (Russell et al., 1992; Tedeschi et al., 2000).
Por outro lado, Silva et al. (2002), utilizando fontes nitrogenadas (farelo de soja, amiréia e farinha de subprodutos de abatedouro avícola) em novilhos confinados, e Carmo (2001), em vacas leiteiras, utilizando os mesmos tratamentos do atual trabalho, não observaram diferenças na digestibilidade da FDN e FDA.
A digestibilidade da FDA foi reduzida (P< 0,05) no tratamento com farelo de soja (deficiente em PDR), em que se obteve 13,8 e 13,4 unidades porcentuais (19,3% e 18,9%) inferiores aos tratamentos com uréia e amiréia, respectivamente (Tabela 2). Entretanto, Carmo (2001) não observou diferença na digestibilidade da FDA em vacas leiteiras, sob os mesmos tratamentos. Já Ezequiel et al. (2001) observaram maior digestibilidade in vitro da FDA no tratamento com uréia, quando comparado ao farelo de algodão e amiréia.
São raros os trabalhos que avaliam a digestibilidade dos CNF em bovinos de corte suplementados com farelo de soja, uréia e amiréia. No presente trabalho, não foram observadas alterações entre os coeficientes de digestibilidade aparente no trato digestivo total dos CNF (P> 0,10). Resultado similar foi obtido por Silva et al. (1994) na digestibilidade do extrativo não-nitrogenado (ENN), quando utilizaram uréia, amiréia e farelo de soja em ovinos.
A digestibilidade da PB não diferiu (P> 0,05) entre os tratamentos, apresentou apenas uma tendência (P< 0,10) de maior digestibilidade nos tratamentos com N não-protéico (uréia e amiréia) (Tabela 2). Resultados similares foram observados por Carmo (2001) em vacas leiteiras e por Silva et al. (1994) em ovinos. Silva et al. (2002), em novilhos confinados, não observaram diferenças na digestibilidade da PB, quando compararam farelo de soja e amiréia.
A suplementação com fontes nitrogenadas não diferiu do coeficiente de digestibilidade aparente do EE (P> 0,10). No entanto, Silva et al. (1994) observaram um coeficiente de digestibilidade do EE menor no tratamento com farelo de soja, quando comparado a uréia e amiréia, em ovinos.
Não houve efeito do tratamento e da interação tratamento x horários (P> 0,05) nos valores de pH do fluido ruminal, tendo apenas um efeito de horários (P< 0,05) (Tabela 3). A variação do pH durante o dia seguiu a curva de fermentação padrão (Owens & Goetsch, 1988), apresentando valores inferiores (P< 0,05 para FS e uréia; P< 0,10 para amiréia) duas horas após o fornecimento das rações. Resultados similares aos de Thompson et al. (1972), quando suplementaram novilhos com farelo de soja, uréia e amiréia.
Não houve diferença (P> 0,05) na concentração molar de ácidos graxos voláteis (AGV) totais nos valores médios diários de cada tratamento (parcelas) e na interação tratamento x horários. Resultado similar foi observado por Carmo (2001), em vacas leiteiras, e por Devant et al. (2001), que comparou farelo de soja e uréia em novilhas.
É necessário N ruminal disponível para que não haja limitação na degradação ruminal de carboidratos. Portanto, em dietas com carboidratos semelhantes (Tabela 1), espera-se alterações na concentração molar e proporção de AGV, somente se houver deficiência ruminal de N (Nocek & Tamminga, 1991).
Com base na concentração molar dos AGV totais do atual trabalho (Tabela 3), pode-se concluir que não houve limitação de N ruminal, embora o tratamento com farelo de soja tenha apresentado um balanço ruminal de N negativo (National Research Council, 1996; Fox et al., 2000), demonstrando que este dado (AGV) não deve ser utilizado isoladamente.
Não houve diferença (P> 0,05) na concentração molar de acetato, propionato, butirato e relação acetato/propionato (C2/C3) nos valores médios diários de cada tratamento (parcelas) e na interação tratamento x horários.
Resultado similar na concentração molar de acetato, propionato, butirato e a relação acetato/propionato foi observado por Thompson et al. (1972) em novilhos, e por Carmo (2001), em vacas leiteiras.
O tratamento com farelo de soja promoveu uma maior (P< 0,05) concentração molar dos ácidos isobutírico, valérico e isovalérico do que os tratamentos com uréia ou amiréia. Este fato pode ter sido observado em decorrência do farelo de soja ser uma fonte de proteína verdadeira de alta degradabilidade ruminal, fornecendo aminoácidos de cadeia ramificada, que podem dar origem aos AGVCR. Tal resultado também pode ter sido verificado em virtude de uma maior síntese de proteína microbiana, utilizando mais os isoácidos (Stiles et al., 1970). Nos tratamentos uréia e amiréia, o CMS e a digestibilidade da fibra (FDN e FDA) foram superiores (Tabela 2), indicando uma maior síntese de proteína microbiana, o que pode ter promovido a menor concentração molar de AGVCR nestes tratamentos (Tabela 3).
Conclusões
1. Quando as exigências em PDR são atendidas (via uréia ou amiréia 150S), em dietas com alta proporção de concentrado, melhora o consumo dos nutrientes e a digestibilidade da fibra em bovinos de corte.
2. A amiréia promove resultados similares aos da uréia convencional no consumo dos nutrientes, digestibilidade e parâmetros ruminais de bovinos de corte confinados.
Agradecimentos
Aos estagiários Rafael Canonenco de Araújo e Clayton Quirino Mendes, pelo auxílio na realização do experimento.