Introdução
Cochliomyia hominivorax, a mosca-da-bicheira, é um díptero pertencente à família Calliphoridae e suas larvas são parasitos obrigatórios de animais de sangue quente.
Sua área de distribuição estende-se por toda a América Latina, desde o México até o norte do Chile e Argentina, uma vez que através de trabalhos de erradicação, foi eliminada dos Estados Unidos (OLIVEIRA-SEQUEIRA; AMARANTE, 2002). As miíases provocadas pelas larvas de C. hominivorax causam grande morbidade e mortalidade, sobretudo em animais domésticos como bovinos e ovinos, acarretando grandes prejuízos econômicos ao agronegócio (LEITE, 2004). Essas larvas provocam miíases obrigatórias (larvas biontófagas que se desenvolvem exclusivamente em tecidos vivos) e as práticas de rotina no manejo dos bovinos nas fazendas produtoras, como castração e descorna, predispõem os animais ao parasitismo. Porém, as maiores perdas são devido aos altos custos dos tratamentos que são feitos normalmente para prevenir e curar os animais doentes (LIMA et al., 2004).
Em estudos com vários dípteros que produzem miíases, verificou-se que a produção de enzimas digestivas secretadas e/ou excretadas pelas larvas é responsável pelo estabelecimento e sobrevivência dessas parasitas nos hospedeiros (MUHARSINI et al., 2000). O interesse no estudo das proteínas produzidas por essas larvas se intensificou devido ao seu potencial de utilização no desenvolvimento de novos imunógenos e na produção de novos medicamentos.
Apesar da importância econômica do parasitismo por larvas de C. hominivorax, são escassos os estudos que abordam os aspectos da relação entre parasita e hospedeiro, que possam servir de base para o desenvolvimento de novas alternativas para o seu controle, o que atualmente, depende exclusivamente do uso de inseticidas. Para o desenvolvimento de pesquisas com C. hominivorax torna-se necessário a manutenção das culturas “in vitro”, que atuam como importante fonte de material para estudo.
A mosca Cochliomyia hominivorax
A mosca C. hominivorax é conhecida como a moscadas- bicheiras e mosca do “Novo Mundo”. Nos Estados Unidos os grandes prejuízos gerados por essas miíases levou ao desenvolvimento de um grande programa de erradicação, baseado na criação da mosca em laboratório e esterilização de machos com raios gama (JEFFERSON, 1960; BAUMHOVER, 1966). Os machos estéreis foram soltos em grande quantidade na natureza, e como as fêmeas copulam uma única vez, ocorreu uma diminuição vertiginosa da população desses dípteros que foram rapidamente erradicados.
A atual distribuição dessa espécie se restringe à pequena parte da América Central e da América do Sul (MARCONDES, 2001).
De acordo com Food and Agriculture Organization - FAO (1992), em grande parte das Américas, C. hominivorax é considerada como a principal miíase dos bovídeos e a segunda mais importante dentre as doenças causadas por artrópodes. No Brasil as miíases provocadas por C. hominivorax ocorrem em 94% dos municípios dos 26 Estados, sendo as regiões Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste as que apresentam maior número de notificações da ocorrência em bovinos (BRASIL, 1983).
Os prejuízos ocasionados por esta mosca, especialmente à pecuária brasileira, são muito expressivos e devem-se à mutilação dos animais, redução na produtividade, danos ao couro, mortalidade e gastos com o controle, causando ainda, redução acentuada na fertilidade, quando a miíase se localiza no escroto de reprodutores (OLIVEIRA-SEQUEIRA; AMARANTE, 2002).
Ciclo biológico
As moscas C. hominivorax só realizam a postura nos bordos de ferimentos de mamíferos de sangue quente. As larvas, com ajuda das enzimas proteolíticas contidas na saliva, alimentam-se de fluídos corporais e de tecido muscular do hospedeiro, onde se estabelecem através de seus ganchos orais (Fig. 1). Estas lesões liberam um odor desagradável, que serve para atrair mais moscas, que fazem postura de mais ovos e também moscas de outras espécies como Phaenicia spp., Lucilia spp. e Cochliomyia macellaria, que normalmente se proliferam em carcaças, mas podem crescer em animais vivos, originando miíases cutâneas secundárias (OLIVEIRA et al., 1982).
A fêmea pode fazer até 5 posturas durante a sua vida, sendo que o número de ovos por postura pode ser de até 390 ovos, podendo chegar a um total de 2.800 ovos depositados durante a fase adulta (Fig. 2). O período de incubação dos ovos varia entre 11 e 21 horas. Após a eclosão dos ovos (Fig. 3) as larvas penetram no tecido e iniciam o período parasitário. Em laboratório o período de L1 e L2 é de cerca de 24 horas, e de L3 entre quatro e cinco dias. Em infestações naturais essas larvas alimentam-se do tecido do hospedeiro, conservando seus espiráculos respiratórios voltados para o exterior. O desenvolvimento de todos os estágios larvais se dá entre 4 e 8 dias, quando as larvas se desprendem do hospedeiro para a pupação. O período de pupa varia de acordo com as condições ambientais (principalmente temperatura e umidade). Em condições favoráveis (normalmente na época de temperatura mais elevada), o período de pupa ocorre em cerca de sete dias, enquanto que nas épocas mais frias este período pode se estender por até dois meses. As fêmeas copulam uma única vez durante sua vida, iniciando seu período de postura, com cerca de dez dias após terem emergido do pupário (OLIVEIRA-SEQUEIRA; AMARANTE, 2002).
Características para identificação
Várias moscas de colorido metálico são freqüentemente confundidas com C. hominivorax, portanto além da cor, existem certas características importantes para sua identificação. As moscas adultas medem de 8 a 10 mm de comprimento, sendo a coloração metálica e de tonalidade verde-azulada (Fig. 4). A cabeça é de um amarelo brilhante com os olhos amareloavermelhados, aparelho bucal do tipo lambedor e com palpos curtos e filiformes. O mesonoto tem três faixas longitudinais negras, sendo a do meio, mais curta (Fig. 5). A basicosta (visível pela parte anterior) é preta e a parte inferior da parafrontália possui cerdas pretas (MARCONDES, 2001).
A característica mais utilizada para a distinção entre os machos e as fêmeas da espécie, é o espaço entre os olhos compostos dessas dípteras, sendo que nos machos (Fig. 4) essa separação se apresenta muito mais estreita do que na fêmea (Fig. 5).
Para a identificação dos diferentes ínstares larvais (L1, L2 e L3), podem ser utilizadas as aberturas dos espiráculos respiratórios, presentes na extremidade posterior da larva. Após a eclosão, a L1 apresenta um único espiráculo respiratório que não é facilmente observado devido a ausência de pigmentação. A Fig. 6 mostra os trocos traqueias da L1 já bem desenvolvidos. Após cerca de 24 horas a L1 sofre a primeira muda passando à L2, a qual apresenta dois espiráculos respiratórios, que podem ser observados na Fig. 7. Após cerca de 24 horas, a L2 sofre uma segunda muda passando a L3, que apresenta três espiráculos respiratórios (Fig. 8).
Manutenção da cultura de Cochliomyia hominivorax “in vitro”
Para o estabelecimento das culturas, as larvas são colhidas em animais naturalmente infestados. No laboratório as posturas são colocadas em placa de Petri contendo o meio de cultura (sangue citratado, e carne moída. As larvas juntamente com o meio de cultura contidos na placa de Petri são colocadas dentro de um recipiente plástico contendo terra autoclavada (Fig. 9). e mantidas em estufa a 37 ºC. É importante a manutenção da umidade durante o período de desenvolvimento larval, o que se consegue utilizando-se um recipiente plástico contendo água. No meio de cultura as larvas se alimentam e se desenvolvem, sofrendo duas mudas, quando na fase final do estágio de L3, abandonam o meio e procuram a terra para iniciarem seu período de pupação (Fig. 10).
Ao final do período de pupação, as pupas são retiradas da estufa e colocadas em gaiola que passará a ser mantida em estufa tipo BOD (Biologic Oxygen Demand) com temperatura de 28 ºC e umidade superior a 85% (Fig. 11).
À medida que ocorre a emergência das moscas, estas podem ser separadas por sexo e passam a ser tratadas com água açucarada oferecida em tiras de gase, para evitar afogamento. Nas fêmeas existe a necessidade de promover a maturação dos ovários, para se evitar a postura de ovos não embrionados. Para a maturação dos ovários e evitar a cópula precoce, as fêmeas podem ser separadas dos machos e alimentadas por cerca de sete dias com carne moída adicionada de mel. Após esse período os machos são colocados junto com as fêmeas para iniciarem o período de cópula, que dura cerca de sete dias.
Após o período de cópula, as fêmeas realizarão a postura de ovos dentro de um recipiente de vidro onde será colocada uma pequena placa de Petri contendo o meio de cultura, (carne e sangue citratado). O recipiente contendo a placa é colocado na estufa a 37 ºC para que a carne seja aquecida e, então, as fêmeas são individualizadas, e colocadas dentro dos recipientes de vidro, os quais são fechados com gaze (Fig. 12), e novamente incubados a 37 ºC para realizarem a postura de ovos. Diariamente deve ser feita a retirada da placa de Petri contendo a postura realizada no meio e, novo meio deve ser reposto para que a fêmea continue seu processo de oviposição.
Feita a postura, que durará aproximadamente cinco dias, as fêmeas já poderão ser descartadas e os ovos poderão ser utilizados para experimentos, ou mantidos em meio de cultura de larvas em estufa para originarem novos ínstares larvais e adultos que também poderão ser utilizados em ensaios laboratoriais. Após a eclosão dos ovos é importante que o meio de cultura seja reposto diariamente para que as larvas possam continuar seu desenvolvimento. Desse modo, é possível a manutenção de uma cultura “in vitro” com todo o ciclo biológico da mosca ocorrendo em laboratório sob condições controladas.