1. Introdução
Até algum tempo comportamento era definido como qualquer movimento executado por um dado organismo, incluindo àqueles que levam a imobilidade absoluta. Contudo, há uma série de manifestações apresentadas pelos animais que não podem ser caracterizadas como movimentos, mas que devem ser incluídas na definição de comportamento, como por exemplo, as mudanças de cores, produção de odores e emissão de sons. Assim, o comportamento passou a ser caracterizado como toda resposta muscular ou secretória, observada por mudanças no ambiente interno e externo dos animais (Kandel, 1976). Para o propósito deste artigo podemos, de forma a simplificar o entendimento, definir comportamento como qualquer coisa que o animal faça.
Com esta definição em mente é fácil perceber que é a partir de certas propriedades anatômicas e fisiológicas dos organismos que o comportamento (como observamos) ocorre. Certamente há uma enorme variação na complexidade do comportamento, desde atos simples, breves e repetidos (esteriotipados) até seqüências de atos complexos e variáveis, sendo evidente que o nível de complexidade dos comportamentos de um dado organismo depende de quão complexo ele é (Dethier & Stelar, 1973). Assim, no início, em filogenia, espera-se a predominância de manifestações simples, com pouca variação ao longo da vida dos animais, não sendo, portanto sujeita a modificações pela experiência; tais comportamentos são definidos como inatos, potencialmente presentes desde o nascimento. Sendo produtos da evolução conferem valor adaptativo para eventos do ambiente com alta previsibilidade. Enfim, são produtos da herança genética.
Mais tarde, em filogenia - com o aumento da complexidade do organismo, o comportamento torna-se mais variável, mais passível de modificações. Nessas condições há o desenvolvimento de ajustes de caráter individual (produtos da experiência), caracterizando o comportamento aprendido.
Mas, há mais para entender sobre o comportamento de um dado animal do que estudar apenas as relações de causa e efeito (mecanismos de controle interno, padrões inatos de comportamento e a habilidades para aprender), deve-se considerar também que o comportamento de um animal não é a soma de manifestações isoladas e estanques, mas um conjunto solidário e interdependente destas em todos os níveis do organismo (Paranhos da Costa, 2002). Assim, há forte influência das condições ecológicas, sendo o próprio animal um fato importante na definição dessas condições, dado que através de seu comportamento ele pode provocar aterações importantes no seu ambiente.
Portanto, para a plena compreensão dos processos envolvidos no desenvolvimento de respostas adaptativas (tendo em conta os processos de filogênese e ontogênese) é necessária uma análise integrada no estudo do comportamento animal. Para que isso possa ser feito devemos entender que o comportamento se caracteriza como um fenótipo, produto da ação de genes e do ambiente, além da interação entre ambos. Esta abordagem é característica da Etologia, o ramo da ciência que trata do estudo do comportamento animal (e humano) numa perspectiva biológica.
O estudo do comportamento animal assume papel importante dentro da produção animal, uma vez que para racionalizar os métodos de criação temos desenvolvido técnicas de manejo, alimentação e instalações que interferem (e também dependem) do comportamento. Assim, a Etologia pode mostrar o caminho para a racionalização da criação animal, principalmente em sistema intensivos de produção (Paranhos da Costa, 1987).
Este artigo não tem a pretensão de esgotar um tema tão amplo e complexo, trata apenas de alguns aspectos do comportamento de bovinos, buscando descrever suas relações com o bem-estar e com a produtividade. Vários trechos deste artigo foram transcritos de publicações anteriores (Paranhos da Costa et al., 2002; Paranhos da Costa, 2002; Paranhos da Costa, 2003), que tratam do mesmo assunto.
2. Etologia aplicada à produção de bovinos
A bovinocultura de corte tem se desenvolvido rapidamente nos últimos anos, todavia as pesquisas têm sido direcionadas quase que estritamente às áreas de nutrição, melhoramento genético e reprodução. Apesar dessas abordagens contribuírem muito, trazendo inúmeros benefícios para o setor da carne, o animal acaba sendo comparado com uma "máquina", dependendo essencialmente da nutrição para responder aos anseios da produção. Essa situação demonstra despreocupação com a biologia do bovino, o que tem limitado o entendimento de algumas respostas encontradas nos trabalhos de pesquisa direcionados ao aumento de produção e/ou à melhoria da qualidade da carne.
Além disso, a implementação de programas de qualidade de carne geralmente tem como ênfase apenas a obtenção de produtos com alta qualidade. Entretanto, tais programas devem considerar mais do que a qualidade intrínseca do produto, eles devem orientar o processo produtivo com compromissos com desenvolvimento social e preservação ambiental. Enfim, devem oferecer um produto seguro, nutritivo e saboroso, produzido de forma sustentável com o compromisso de promover o bem-estar humano e animal, sem perder de vista a lucratividade do produtor.
Neste cenário, o estudo do comportamento pode propiciar uma nova perspectiva para o modelo convencional de abordagem científica zootécnica, trazendo luz a situações não consideradas ou mal compreendidas.
A Etologia assume assim papel importante para a compreensão das necessidades do bovino, bem como das nossas (seres humanos) relações com esses animais. Nesse sentido, a literatura sobre a biologia dos bovinos é ainda escassa.
Os programas de qualidade utilizados nas empresas nacionais ou internacionais preconizam inicialmente a compreensão, no sentido mais amplo, das interações existentes entre clientes e fornecedores. Além disso, o conhecimento do conceito processo é um ponto determinante na implementação de qualquer programa de qualidade. Mas, o qual a relação existente entre comportamento animal e esses conceitos empresariais?
O conceito de processo diz respeito ao conjunto de fatos e/ou operações interligadas entre si que estão em movimento causando efeitos ou gerando resultados. Destacando-se a grande relevância das ações e decisões tomadas em cada processo nas atividades que o seguem. Como exemplo, podemos citar a grande dependência existente entre as etapas que compõem a cadeia produtiva da carne. A qualidade do bife que comemos, é diretamente influenciada pelo acondicionamento da carne na prateleira do supermercado que por sua vez é influenciado pelo processo de abate, que sofre interferência do manejo pré abate, que é conseqüência do processo de recria e engorda que é oriundo do processo de cria. Devemos entender ainda que cada processo é composto por sub-processos e que quanto mais conhecemos os detalhes destes, melhor poderemos interagir para alcançar os resultados desejados. Esta relação entre processos e sub-processos deve ser interpretada como uma relação entre cliente e fornecedor de maneira a caracterizar o processo anterior como o fornecedor e o processo posterior como o cliente, e que quando melhoramos a qualidade de um processo, necessariamente favoreceremos a qualidade do processo seguinte.
Com um enfoque voltado ao processo produtivo, do nascimento até o abate do bovino, devemos ainda compreender que a definição de cliente e fornecedor pode ir além da relação entre processos e que a caracterização do sujeito pode ser alterada nas diferentes situações. O cliente das nossas ações (aquele que adquire bens ou serviços) é, na maioria das vezes, o próprio gado que recebe a ação, ou seja, recebe a alimentação e recebe os cuidados sanitários, sendo criado segundo as condições ambientais que nós fornecemos. Nesse contexto, nós somos caracterizados como fornecedores (aquele que fornece bens ou serviços para outros). No entanto, em situações de manejo com o gado (condução dos animais), o animal estará interagindo diretamente com o homem e nesse contexto ele pode ser caracterizado tanto como cliente, recebendo o manejo, ou fornecedor, reagindo ao manejo de maneira positiva ou negativa. Essa resposta do animal pode ser conseqüência de um conjunto de estímulos, genéticos ou ambientais, todavia a experiência anterior adquirida pelo indivíduo, pode ser um fator preponderante nessa resposta. Uma abordagem mais macroscópica nos leva a entender o bovino, no processo final de produção, após o abate, como sendo também nosso fornecedor oferecendo sua carne com os reflexos da qualidade decorrentes das nossas ações durante o processo no qual éramos fornecedores.
Com essa abordagem podemos imaginar quão preciosas são as informações que caracterizam as necessidades dos animais, neste caso o estudo do comportamento pode auxiliar a compreendê-las de forma mais efetiva e coerente, diminuindo a possibilidade de interpretações empíricas nas observações dos animais e, por conseqüência, facilitando o manejo e melhorando a sua qualidade de vida.
Assim, é importante buscarmos o pleno conhecimento da biologia da espécie bovina, definindo quais recursos são importantes para esses animais e quais as necessidades dos mesmos em relação a eles. Já existe alguma informação disponível na literatura (Phillips, 1993; Albright e Arave, 1997; Paranhos da Costa, 2000); mas ainda há muito que aprender sobre o comportamento dos bovinos e a ecologia nos ecossistemas das pastagens. Entendemos que só a partir da aquisição desse conhecimento estaremos mais bem preparados para definir técnicas de criação e de manejo dos bovinos, atendendo aos interesses econômicos, sem prejudicar o meio ambiente e o bem-estar dos animais.
A aplicação desses conhecimentos na rotina das fazendas é um desafio ainda maior, apesar de existir alguns bons exemplos, indicando que esta estratégia pode trazer ganhos diretos e indiretos para todos os segmentos envolvidos com a produção de carne, há ainda muitas barreiras a serem vencidas, tanto técnicas como culturais. Muitos reconhecem a importância de reduzir o estresse dos animais durante a rotina de manejo, sabem, por exemplo, que animais agitados durante o manejo correm maior risco de acidentes, levando ao aumento de contusões nas carcaças (Paranhos da Costa et al., 1998), além de a carne ficar mais dura e escura (Voisinet et al., 1997). Contudo, poucos reconhecem que esses riscos diminuem quando os animais são manejados com calma e tranqüilidade.
Assim, a falta de conhecimento sobre a biologia da espécie e a nossa resistência (humana) a mudanças na lida com os bovinos, são limitações que devem ser superadas na implementação de programas de qualidade da carne e do couro. A seguir pretendemos discutir a utilização da abordagem etológica (estudando o comportamento dos bovinos em suas relações com as pessoas que com eles trabalham) na solução desses problemas.
2.1. Interações entre humanos e bovinos.
Provavelmente seres humanos e animais interagem há centenas de milhares de anos, havendo indícios de que o nosso relacionamento com os bovinos se estreitou com o processo de domesticação por volta de 6.000 anos a.C. (Stricklin & Kautz-Scanavy, 1983/84; Boivin et al.,1992).
Atualmente, a intensidade e o tempo que despendemos na interação com esta espécie animal é variável, dependendo do sistema de criação adotado. Há a expectativa de que em sistemas intensivos de criação há uma maior interação entre humanos e bovinos, uma vez que os primeiros são responsáveis pelo fornecimento de alimento, cuidados sanitários e ordenha, dentre outras ações desenvolvidas rotineiramente com esses animais. Entretanto, a qualidade desta relação (humano x bovino) precisa ser mais bem avaliada, pois além do tempo despendido no cuidado dos animais é preciso saber também como seres-humanos e animais reagem a esta interação, se é algo que traz estímulos positivos, negativos ou neutros; enfim se a interação é ou não é agradável para cada um dos sujeitos. Com esta perspectiva fica claro que a análise das relações deve se dar em nível individual e de forma contextualizada.
Defendemos aqui a tese de que a definição de uma proposta de criação de bovinos deve ser feita com o pleno entendimento dessas interações, tendo em conta, além das ações que pretendemos desenvolver com os animais, suas eventuais respostas. Este conhecimento permite, ao nosso ver, melhorar nossas relações com os bovinos, com reflexos positivos na atividade produtiva, inclusive em termos de qualidade do produto.
Há fortes evidências de que existem períodos sensíveis para a definição da qualidade destas relações, sendo que situações críticas, como o nascimento e a desmama, se caracterizariam como períodos sensíveis para a definição das relações entre humanos e bovinos (Boivin et al., 1992). Assim, as reações dos bovinos à presença humana seriam definidas, em grande parte, pelo tipo de interação que ocorrer principalmente nesses, mas também em outros momentos. Há evidências empíricas disto: Boivin et al. (1992), mostraram que bezerros manejados de forma gentil próximo ao nascimento e ao desmame foram menos reativos à presença humana, com a supressão de respostas agressivas mesmo após muitos meses desde o manejo gentil.
Apesar dessas evidências, muitos pesquisadores, criadores e trabalhadores ainda não reconhecem este relacionamento como valioso. Apontam os bovinos puramente como objetos de trabalho, máquinas de produção que não se alteram com os comportamentos humanos (ver relatos de Hemsworth & Coleman, 1998). Não há como implementar um programa de qualidade da carne em empreendimentos pecuários que seguem esta filosofia de trabalho, pois desconsideram estar trabalhando com um sujeito que tem vontade própria, produto de necessidades e desejos que o caracteriza como um ser vivo (o bovino) em interação com seu ambiente (do qual nós – seres humanos – somos parte importante).
Felizmente essa visão mecanicista está perdendo terreno, e muitas pesquisas estão sendo desenvolvidas para a melhor compreensão das relações entre humanos e animais de produção (Arave et al., 1985; Boivin et al., 1992; Blackshaw, 1996; De Passilé et al., 1996; Lewis & Hurnik, 1998; Jago et al., 1999; Breuer et al., 2000).
A boa relação entre humanos e animais depende muito do interesse de quem desenvolverá as atividades no ambiente de criação (Hemsworth & Coleman, 1998). Um bom trabalhador sempre deverá estar atento ao comportamento e às necessidades fisiológicas, de segurança e comportamentais. Quanto às necessidades fisiológicas, a deficiência ou o excesso de um determinado recurso ou estímulo pode contribuir para o estresse, ocasionando a redução da produtividade.
As necessidades de segurança dizem respeito a acidentes com equipamentos e instalações, ação de predadores, etc., que em geral são pouco considerados, provavelmente pelo fato de não serem alvo de muitos estudos, mas que podem resultar até em morte do animal. Dentre todas, as necessidades comportamentais são as menos compreendidas, sendo classificadas em três categorias (Curtis, 1993): abuso (crueldade ativa, agressão física), negligência (crueldade passiva do tipo que ocorre quando um animal é confinado e então é negada uma necessidade fisiológica como alimento, água, cuidados com saúde ou abrigo) e privação (crueldade passiva que envolve a negação de certos elementos ambientais que são considerados menos vitais que as necessidades fisiológicas ou de segurança). O não atendimento dessas necessidades geralmente resulta em frustração, medo ou desconforto, com conseqüências negativas no processo produtivo como um todo (queda na produtividade e produtos de pior qualidade).
Os bovinos são animais que gostam de rotina e que, ao que tudo indica têm boa memória. São capazes de discriminar as pessoas envolvidas nas interações, apresentando reações específicas a cada uma delas em função do tipo de experiência vivida, caracterizando assim um aprendizado associativo, do tipo condicionamento operante. Vários pesquisadores têm registrado a associação dos animais para as ações de manejo e às pessoas que as desenvolvem (Arave et al., 1985; Kilgour, 1993; De Passilé et al., 1996; Munksgaard et al., 1997; Rushen et al., 1997; Lewis & Hurnik, 1998; Jago et al., 1999; Breuer et al., 2000; Pajor et al., 2000). No caso das ações humanas serem aversivas, há uma tendência de aumentar o nível de medo dos animais pelos humanos (Pajor et al., 2000). Obviamente, algumas ações (e comportamentos) humanas são claramente aversivas para os bovinos: elevação da voz, pancadas e utilização de ferrão são ações muito comuns no manejo de bovinos de corte, resultando em animais com medo de humanos. Práticas de rotina, como vacinação, marcação e castração, também são aversivas. Em geral, ações aversivas conduzem a respostas negativas, com o aumento do nível de medo dos animais pelos humanos causando uma maior distância de fuga, dificultando o manejo de alimentação, dos cuidados sanitários, da ordenha e das práticas zootécnicas e resultando em estresse agudo ou crônico.
Há também tratamentos classificados como positivos. As associações positivas dos animais em relação às ações recebidas são refletidas no aumento da produtividade, melhores índices reprodutivos, na obtenção de produtos de melhor qualidade, numa menor distância de fuga e na facilidade em desempenhar o manejo do rebanho (Stricklin & Kautz-Scanavy, 1983/84; Arave et al., 1985; Boivin et al., 1992; Lewis & Hurnik, 1998; Jago et al., 1999; Breuer et al., 2000). Dentre as ações positivamente aceitas pelos bovinos podem ser citadas: afagos, conversas com timbre de voz suave, assobios e músicas.
2.2. Qualidade de carne
A qualidade da carne é definida por suas propriedades físico-químicas e traduzida em maciez, sabor, cor, odor e suculência. Estas propriedades de uma peça de carne são determinadas pelos muitos fatores inerentes ao indivíduo (genética, idade, sexo), à fazenda de origem (manejo alimentar, manejo geral) transporte, manejo pré-abate, abate e métodos de processamento da carcaça, duração e temperatura de estocagem e a forma de cocção utilizada.
O pH da carne tem um papel determinante na aceitabilidade da carne por afetar maciez, cor, sabor e odor (Devine, 1994 citado por Carragher & Matthews, 1996). O pH é determinado pela quantidade de glicogênio no músculo no momento do abate. Carne com pH em torno de 5,5, geralmente, apresenta-se macia, com boa coloração e de paladar saboroso. Se, entretanto, o músculo contém menos glicogênio ao abate, haverá menos ácido lático e o pH último terá uma queda menor. Carnes mais escuras, duras e impróprias para consumo tendem ser resultante de pH em torno de 5,8 a 6,2. Carnes com pH entre 6,2 e 7,0 são escuras, firmes e secas à cocção e somente poderão ser comercializáveis se manufaturadas.
O manejo pré-abate influencia significativamente a qualidade de carne e mesmo o aproveitamento da carcaça. Segundo estimativas de Grandin (1980), o estresse no manejo préabate acarretaria cerca de três milhões de dólares/ano de prejuízo aos abatedouros em decorrência de contusões nas carcaças, levando a um prejuízo anual de US$ 22.500.000,00 para a economia americana, danificando cerca de 9,2% das carcaças. Na Nova Zelândia cerca de 40% do gado seria contundido durante o manejo pré-abate.
Além das perdas decorrentes de contusões e hematomas, o estresse vivenciado por estes animais durante o manejo em abatedouros mal planejados leva ao aumento do pH da carne diminuindo a sua qualidade.
Grandin (1980) citou que numerosas contusões podem ocorrer em decorrência do temperamento e que isto pode agravar-se se os animais são aspados. Observa ainda que nos EUA os bovinos aspados perdem em média 1,86kg por carcaça e os não aspados perdem 1,12kg.
Para finalizar este tópico convém lembrar que no manejo pré-abate as etapas mais críticas são as de embarque e de desembarque dos animais. No caso de manejo agressivo nesses momentos, os animais ficarão mais estressados, resultando em prejuízos para a carcaça (contusões) e qualidade da carne (cortes escuros - "dark-cutting"), lembrando que tais prejuízos podem ser decorrentes da ação direta do homem, ao bater ou acuar os animais contra cercas, porteiras, etc., ou indireta, com a formação de lotes novos nessa etapa final da produção, desrespeitando os seus padrões de organização social e aumentando as interações agressivas entre os animais.
2.3. Os custos da má qualidade: uma experiência no manejo pré-abate.
O manejo pré-abate envolve uma série de situações não familiares para os bovinos, que causam estresse aos mesmos, dentre elas: agrupamento dos animais, confinamento nos currais das fazendas, embarque, confinamento nos caminhões (com e sem movimento), deslocamento, desembarque, confinamento e manejo nos currais dos frigoríficos. Tais atividades devem ser bem planejadas e conduzidas para minimizar o estresse, que pode causar danos à carcaça e prejuízos na qualidade da carne. No Brasil, não temos prestado atenção a esta etapa da produção, mesmo aqueles diretamente envolvidos - produtores, transportadores e frigoríficos - pouco sabem sobre as conseqüências de um manejo pré-abate inadequado, que certamente traz reflexos negativos na rentabilidade do pecuarista e do frigorífico.
Com o objetivo de avaliar o manejo pré-abate no programa de qualidade de carne bovina do FUNDEPEC (Fundo para o Desenvolvimento da Pecuária no Estado de São Paulo), procuramos identificar pontos críticos possivelmente correlacionados com o aumento a posteriori na ocorrência de contusões nas carcaças (Paranhos da Costa et al., 1998). Tais avaliações caracterizaram-se, pelo curto tempo despendido, em uma abordagem preliminar.
Realizamos algumas observações, adotando o método etológico, sobre os procedimentos envolvidos no transporte de bovinos para o frigorífico (desde o manejo na fazenda até o momento do abate), descrevendo as condições de instalações e manejo, o comportamento dos animais e a freqüência de contusões nas carcaças. Foi acompanhado o embarque de animais em 4 fazendas, os quais foram transportados 12 caminhões. O desembarque de alguns desses animais também foi acompanhado, avaliando, em alguns casos, manejo nos currais do frigorífico.
Com base neste levantamento identificamos os seguintes problemas no manejo pré-abate que resultaram em aumento de hematomas nas carcaças: (1) agressões diretas; (2) alta densidade social, provocada pelo manejo inadequado no gado nos currais da fazenda e embarcadouro; (3) instalações inadequadas; (4) transporte inadequado, caminhões e estradas em mau estado de conservação; (5) gado muito agitado, em decorrência do manejo agressivo e de sua alta reatividade. Mesmo sob boas condições de transporte e em jornadas curtas o gado mostrou sinais de estresse. A intensidade foi variável, mas caracteriza uma situação típica de medo. A freqüência de contusões foi variável de fazenda para fazenda.
A deterioração das condições de transporte teve componente acidental, mas também foi provocada por falhas no manejo, decorrentes da falta de equipamento adequado, falta de treinamento de vaqueiros e motoristas, além da falta de supervisão. É necessário que todo o processo seja aprimorado: desde o manejo e as instalações nas fazendas, a condição geral dos veículos e a forma de conduzi-los, bem como as instalações e o manejo nos frigoríficos.
Concluímos que para garantir o sucesso na implantação do programa de qualidade de carne bovina é necessário um estudo minucioso para detectar pontos críticos e estabelecer um programa de qualidade de serviços no manejo com o gado. Há necessidade de avaliar a eficiência das instalações e equipamentos em uso (currais na fazenda, embarcadouros, caminhões, ferrões elétricos, currais no frigorífico, sala de atordoamento), bem como o tipo de gado (em termos de reatividade) e a forma com que eles têm sido manejados. Programas de treinamento, dirigidos a todos que lidam com o gado, deveriam ser implementados de imediato, uma vez que de maneira geral o manejo tem se caracterizado como muito agressivo.
2.4. Instalações e manejo: alterações no comportamento dos bovinos.
Vários recursos e estímulos são necessários para que os bovinos se encontrem em boas condições de bem-estar, como: o espaço em si, permitindo que os animais mantenham suas atividades em um contexto social equilibrado; os abrigos, para que possam se proteger dos rigores do clima; os alimentos, incluindo as forragens, a água e os suplementos. Existem particularidades que definem o grau de necessidade de cada um desses recursos, dependendo das características genéticas e ambientais, como por exemplo, a necessidade por sombra depende da capacidade de adaptação do animal ao calor. Portanto, os maiores riscos para diminuição do bem-estar de animais mantidos em pasto ocorrem na ausência ou deficiência de um ou mais dos recursos necessários, que resulta no aumento da competição entre os animais, com prejuízos óbvios para os submissos.
De maneira geral, pode-se dizer que os bovinos são bem modestos em suas necessidades em qualquer um desses itens e, portanto, elas podem ser atendidas sem muitas dificuldades. Todavia, quando bovinos são manejados, conduzindo-os, geralmente, para os currais, promovese uma desorganização em suas atividades sociais, dificultando a manutenção do espaço individual e provocando a quebra do equilíbrio na hierarquia de dominância, sendo difícil minimizar esses efeitos devido aos equipamentos e às estratégias usadas rotineiramente.
Estudos sobre a forma e dimensionamento de currais de manejo têm sido realizados pela Dra. Temple Grandin, da Universidade do Colorado, EUA (Grandin, 2002) levam em conta aspectos do comportamento e da estrutura biológica dos bovinos, por exemplo: dado o posicionamento de seus olhos, os bovinos tem um ângulo de visão muito amplo, mas também têm alguns pontos cegos. O manejo de condução do gado será facilitado ao se considerar esta característica, caso contrário poderemos dificultá-lo; por exemplo: se um bovino perde de vista a pessoa que o maneja, (por adentrar na zona cega, que ocupa aproximadamente 14° na parte traseira do animal), ele provavelmente irá parar para olhar para trás, tentando manter a pessoa no seu campo visual, atrasando todo o deslocamento (Grandin, 2002). Imagine o tempo que será perdido se isto se repetir com cada animal que estiver sendo conduzido para o tronco ou para o brete. Um outro exemplo interessante quanto à capacidade visual do bovino está relacionado com o tipo de cercado que é utilizado no curral e demais áreas de manejo, com tábuas intercaladas por espaços abertos: este tipo de desenho permite que o gado se distraia ou se assuste com acontecimentos ou pessoas que estão do lado externo; fazendo com que os animais parem, recuem e tentem saltar, atrasando a conclusão do trabalho, ao vedar esses espaços na seringa tempo de entrada dos animais no tronco é diminuído, além de ocorrer maior uniformidade das respostas.
Um outro aspecto prático, envolvendo comportamento e manejo, diz respeito ao dimensionamento das estruturas de manejo mais intensivo, as quais são elaboradas em geral visando apenas o manejo de uma categoria específica de animais (animais adultos). Assim, indivíduos menores (bezerros) ocupam menor espaço dentro dos compartimentos de manejo (brete ou tronco), o que oferece a possibilidade, não desejável, de maior movimentação, por exemplo: virando-se completamente e ficando posicionado na direção oposta ao movimento desejado. Este problema tem sido resolvido através do desenvolvimento de estruturas que reduzam o espaço interno e são acopladas em tais compartimentos durante o manejo específico.
Ainda um outro aspecto importante é a condução dos animais para ambientes que eles desconhecem, como os caminhões. Neste caso, deseja-se que o embarque seja feito de forma rápida e tranqüila, mas nem sempre isso é possível. Dependendo do temperamento dos animais e do sistema de manejo utilizado, o gado pode ficar muito relutante em entrar no caminhão (ou em qualquer outro tipo de instalação desconhecida para ele); geralmente os animais abaixam a cabeça, cheirando o chão ou piso, e se locomovem muito lentamente, às vezes com relutância (avançando alguns passos e recuando em seguida). Na expectativa de acelerar o processo de embarque (ou de entrada em bretes ou troncos), geralmente os animais são estimulados com cutucões, choques elétricos e, não raras vezes, com pancadas fortes. Tal atitude irá estressar ainda mais os animais, que ficarão mais nervosos, aumentando a agressividade e os riscos de acidentes (eles podem se atirar contra as grades do caminhão, pular sobre outros animais, escorregar, cair, atacar os outros animais com cabeçadas e coices, etc.).
A facilitação social do comportamento é uma forma bastante eficaz em situações que ocorre relutância do gado em ser conduzido para um local desconhecido. Essa facilitação pode ser realizada através da utilização de um animal "madrinha" (animais dóceis e treinados introduzidos no lote de animais durante o manejo), que favorece a movimentação dos animais através do estímulo inicial (inicia o comportamento) em realizar determinada ação. Através de observações empíricas, a utilização de madrinhas em grupos de animais jovens (bezerros) também pode ser de grande importância ao desenvolvimento desses animais, auxiliando no início da ingestão de suplementação, através de processos de aprendizagem, bem com, oferecendo uma possível sensação de proteção aos bezerros recém desmamados.
O espaço reservado a cada animal dentro de uma área de manejo é extremamente importante no sentido de facilitar a convivência social em um grupo. Em áreas de confinamento, este pode ser um fator preponderante na qualidade de vida dos animais, facilidade de manejo e até mesmo na garantia de sucesso do empreendimento. Encarnação (1980) analisou a concentração de cortisol no plasma sangüíneo de novilhos de ano, inteiros, das raças Fleckvieh e Holandês preto e branco (HPB), confinados sob diferentes densidades. Os grupos criados em 2m2/animal apresentaram níveis significativamente maiores de cortisol (P<0,01) que os criados em 3m2/animal (6,63 ± 0,53 e 3,83 ± 0,50 ng/ml, respectivamente). Observaram também baixas concentrações do corticosteróides no sangue de animais dominantes e maiores níveis à medida que decaía a posição na escala social do rebanho, onde o último classificado se apresentou mais estressado.
Novilhos de diferentes raças de engorda na Alemanha, estabulados com idade entre 9 e 18 meses, apresentaram correlações altamente significativas entre categoria social: peso (r =0,86) e categoria social : idade (r =0,71), (Theidemmann, 1971 citado por Encarnação, 1985).
O isolamento social também afeta o comportamento, ganho de peso e qualidade da carne. Andrighetto et al. (1999) observaram que bezerros criados em grupo apresentaram posturas de descanso mais confortáveis, maior freqüência de interação social e também melhor ganho de peso e eficiência alimentar, bem como carne mais macia, saborosa e com menor percentagem de gordura intramuscular.
Outros fatores como tamanho e forma dos chifres, temperamento, experiência em lutas anteriores, sexo, raça e saúde são importantes para o posicionamento social dentro de um rebanho. Uma vez definida a hierarquia social num rebanho a ordem é relativamente estável e as posições respeitadas; disputas e desavenças são raras e as categorias são mantidas com simples ameaças. Atritos são novamente presentes se animais estranhos são introduzidos no grupo. Daí, a importância de se manterem lotes fixos durante a fase de engorda (Encarnação, 1987).
2.5. Efeitos do ambiente térmico no desempenho e comportamento de bovinos
Apesar das diversas tecnologias empregadas em sistemas intensivos e extenvivos para a produção de bovinos, quase sempre não existe qualquer preocupação com o ambiente térmico, com ausência de estruturas que promovam proteção contra o calor ou frio para os animais envolvidos. Um animal colocado em um ambiente que não disponha de condições e recursos necessários para evitar o frio ou calor pode enfrentar dificuldades para manutenção de suas funções orgânicas, caracterizando assim, o estado de estresse. Nessa condição, os animais acionam mecanismos que implicam em mudanças na taxa metabólica, temperatura corporal, freqüência respiratória e freqüência cardíaca, além de alterações hormonais, metabóbilicas e comportamentamentais. Essas mudanças ocorrem como tentativa de promover a adaptação do organismo ao meio, mas dependendo da severidade, geralmente implicam em diminuição no crescimento, problemas de ordem reprodutiva, falhas no sistema imunológico e, em situações extremas, até mesmo a morte.
Portanto, o aperfeiçoamento ambiental proporcionando condições em que o animal possa atenuar os efeitos do ambiente térmico, usualmente traz benefícios à produção, aumentando a produtividade e a eficiência na utilização de alimentos.
Dentre os métodos de aperfeiçoamento ambiental, podemos citar a manutenção e o posicionamento de produtores de sombras nas pastagens, pois ao interceptar os raios solares, reduziremos a carga térmica radiante em 30 % ou mais (Gangwar, 1988). Deste modo, em ambientes quentes, com alta incidência de radiação solar, devemos proporcionar sombra para os animais, reduzindo o aquecimento corporal e facilitando a termorregulação.
A intensidade com que os animais procuram a sombra (definida pela freqüência com que o fazem e pelo tempo de permanência no local sombreado), é controlada por diversos fatores, destacando-se: as condições climáticas; os fatores sociais, envolvendo hierarquia e territorialismo; as diferenças entre raças e as diferenças entre indivíduos dentro de raça.
Com tantas variáveis influenciando o grau de utilização desse recurso, como definir o quanto devemos ofertar de sombra para os animais? A maneira mais simples de se obter essa resposta é através da observação dos comportamentos dos animais, muito dos quais representam importantes mecanismos de termorregulação para animais criados a pasto e são facilmente mensuráveis em situações a campo.
É de conhecimento geral que os animais procuram sombra nas horas mais quentes do dia (Bennett et al., 1985). Isto leva-nos a pensar que, se esse recurso estiver disponível aos animais nesse período suas necessidades serão atendidas. Todavia, esse pensamento não é correto, há um grande número de variáveis definindo essa resposta, em algumas situações os animais necessitam desse recurso por períodos mais prolongados.
O fato da necessidade desse recurso ser circunstancial torna difícil o estabelecimento de uma regra geral a respeito de quando e quanto de sombra devemos oferecer aos animais; cabe apenas a regra de que deve haver sombra suficiente para abrigar todos os animais ao mesmo tempo à qualquer hora do dia.
É muito comum escutar a frase: "Nelore não precisa de sombra, essa raça é adaptada ao calor". Apesar desses animais apresentarem uma estrutura biológica mais adequada aos efeitos do ambiente tropical, com pelagem mais densa, curta e pêlos brancos, pigmentação negra da epiderme e maior quantidade de glândulas sudoríparas, é difícil imaginar que numa situação de radiação solar direta e alta umidade, características de algumas regiões do Brasil, algum animal, mesmo sendo "adaptado ao calor" não esteja sendo influenciado por esse ambiente. Num estudo sobre os efeitos do sombreamento artificial no desempenho de novilhas Nelore confinadas (Chiquitelli et al., 2003) foram observados resultados favoráveis aos animais que dispunham do recurso sombra. A Figura 1 ilustra o ganho de peso acumulado de novilhas Nelore confinadas em dois grupos experimentais (sem sombra e 1,5 m2 de sombra por animal).
Figura 1. Peso vivo acumulado durante o período experimental entre os grupos de novilhas Nelore confinadas sem sombra e com 1,5 m2 de sombra por animal. (Chiquitelli Neto et al, 2003).
Efeitos benéficos da sombra para a reprodução também foram descritos. Em um outro trabalho de nosso grupo (Chiquitelli Neto et al., 2002) foi caracterizada uma melhor condição espermática de touros da raça Brangus que dispunham de sombra (4m2/animal), com aumento da motilidade espermática; enquanto que os que não dispunham desse recurso apresentaram queda na motilidade (Figura 2). Além disso, os animais que permaneceram por mais tempo utilizando a sombra foram os mesmos que, em situação de estresse témico (antes da pesquisa), apresentaram maiores problemas reprodutivos (Tabela 1). Os coeficientes de correlação encontrados, 0,50 e –0,51, respectivamente para as variáveis Def >1 e EN1 com o tempo de uso da sombra, foram significativos, demonstrando associação entre o uso da sombra e as características morfológicas do sêmen durante o período que antecedeu o trabalho (Chiquitelli Neto et al., 2002). Dessa maneira, a observação do comportamento de uso de sombra por bovinos pode contribuir sobremaneira na identificação de animais mais adaptados aos efeitos da elevada temperatura do ar e radiação solar.
Figura 2. Ganho médio em motilidade espermática (GMot) de touros Brangus que dispunham de sombra ou não. Médias representadas pelas colunas com letras distintas, diferem entre si (P<0,05) pelo teste de Tukey (adaptado de Chiquitelli Neto et al., 2002).
Tabela 1. Coeficientes de correlação entre as variáveis: ganho médio diário (GMD), ganho de perímetro escrotal (GPE), ganho de volume testicular (GVT), patologia espermática total inicial (PT1), defeitos maiores inicial (Def >1), defeitos menores inicial(Def <1), espermatozóides normais no início do trabalho (EN1), motilidade espermática inicial (Mot1), ganho em motilidade espermática (GMot) e tempo de uso da sombra (Sombra), durante o período experimental (adaptado de Chiquitelli Neto et al., 2002).
3. Considerações finais
Há novos desafios para a produção animal, além de buscar melhor produtividade e aumento na qualidade do produto, devemos também ter em conta que há uma demanda pela população por sistemas de produção que não agridam ao ambiente e assegurem que o bem-estar dos animais não será comprometido. Para melhor avaliar as atuais estratégias de produção de bovinos é necessário ampliar o conhecimento sobre seus comportamentos e bem-estar, independente dos sistemas de criação. Só assim poderemos interferir de forma adequada, propondo novos sistemas de produção que proporcionem instalações e manejos adequados.
A discussão desse tema (ou novo conceito) é, sem dúvida, extensa e muito importante, não sendo possível esgotá-la neste artigo. Fica a mensagem, com a expectativa de que ela estimulará a reflexão sobre os procedimentos que temos adotado para a obtenção de produtos de origem animal. Se isto ocorrer, independentemente das conclusões a que os leitores chegarem, teremos alcançado nosso objetivo.
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