1 Introdução
O desenvolvimento da indústria avícola, fenômeno de caráter mundial que tem no Brasil talvez seu maior exemplo, reflete-se no surgimento de mega-companhias, nacionais ou internacionais, as quais controlam a criação e o processamento de vários bilhões de aves, quer seja diretamente como também através de seus parceiros. Por suas peculiaridades regionais, é comum constatar a existência de variados graus de especialização, intensificação e tecnologia ainda hoje convivendo, nem sempre harmonicamente, dentro do universo da avicultura.
O fato de movimentar a transformação de animais vivos em alimentos em uma escala gigantesca, o processamento de aves e seus sub-produtos resultantes geram grandes quantidades de dejetos líquidos, semi-sólidos e sólidos altamente poluentes, os quais devem ser adequadamente separados e tratados antes de serem despejados no meio-ambiente. A quantidade de sub-produtos gerados no processamento tem aumentado, devido às exigências dos consumidores por partes de frango, ao invés das carcaças inteiras. Sangue, penas, intestinos, cabeças, pés, pescoços, peles, gordura abdominal e coluna vertebral, entre outros, representam 50 a 60% do peso vivo dos frangos, sendo que alguns destes são destinados para produzir matéria-prima para a produção de alimento para animais de estimação, sendo no entanto a maioria processada para ser reciclada como farinhas para rações para animais de interesse econômico. O reaproveitamento destes sub-produtos é pois de extrema importância, contribuindo na redução do volume de dejetos e propiciando a produção de materiais que possam ser usados na alimentação de animais ou na fertilização do solo.
O controle da poluição ambiental gerada pelas plantas de processamento avícola depende grandemente dos níveis estabelecidos como aceitáveis pelas legislações dos diferentes países. Nos países mais desenvolvidos, especialmente nos grandes aglomerados urbanos, os padrões determinados podem ser bastante rígidos, com penalizações severas e crescentes sendo aplicadas em casos de descumprimento das exigências legais. Normalmente, estes parâmetros de controle são baseados naqueles recomendados para o tratamento de dejetos de origem humana, respeitadas as peculiaridades de cada tipo de material. Há inclusive a expectativa por parte de alguns autores de que o tratamento biológico da água utilizada no processamento venha a tornar-se o processo mais importante dentro da industrialização do produto avícola.
Embora o tema poluição ambiental inclua um sem-número de aspectos (físicos, químicos e biológicos), a abordagem neste trabalho concentrar-se-á na qualidade microbiológica dos efluentes gerados pelos abatedouros avícolas, em especial na importância da presença de bactérias do gênero Salmonella nestes materiais. Algumas definições de parâmetros de qualidade da água utilizados neste trabalho se fazem necessárias para uma melhor compreensão das informações apresentadas:
Coliformes totais:
Grupo de microrganismos utilizados como índice de poluição da água, sendo mais facilmente isolados e identificados do que outros patógenos presentes na água, como por exemplo as salmonelas.
Coliformes fecais:
Por constituírem cerca de 95% da flora intestinal, sua presença na água denota poluição fecal, e por conseqüência a possibilidade de contaminação por bactérias patogênicas que, por serem mais raras e mais frágeis às condições ambientais, são mais difíceis de evidenciar.
Demanda bioquímica de oxigênio (DBO):
É uma medida do material prontamente biodegradável em um efluente, sendo obtida ao medir-se o oxigênio consumido por microrganismos aeróbicos, quando um volume conhecido do efluente é adicionado a um volume também conhecido de água saturada em oxigênio, e incubado a 20 oC por 5 dias. Esta medida normalmente indica a concentração de poluentes remanescentes no efluente após o tratamento e antes da descarga do mesmo no ambiente. Os padrões no Reino Unido recomendam uma DBO máxima de 20 mg/l nesta situação.
2 A qualidade da água e sua utilização no processamento avícola
Diversas etapas do processo de abate e industrialização realizados nas plantas de processamento requerem o uso de água, especialmente durante a escalda, o depenamento, a evisceração, a lavagem e o resfriamento das carcaças. A legislação internacional, por seu turno, exige o uso exclusivo de água potável nas indústrias de alimento. No entanto, em que pese a realização de controles de qualidade nas plantas de tratamento, a água liberada pelos abatedouros podem representar um risco em potencial, inclusive pela possibilidade da presença de bactérias lesionadas pelo processo, mas ainda assim viáveis e capazes de causar danos à saúde. Da mesma forma, o fenômeno da aderência de bactérias às superfícies (canos, torneiras, chuveiros, etc.) causa a formação de um biofilme, a partir do qual estas mesmas bactérias são regularmente liberadas na água que por ali passa, consequentemente contaminando carcaças e outros produtos. Infelizmente, desconhece-se grande parte dos fatores envolvidos no processo de limpeza das carcaças de aves. Fatores como a cinética e as forças necessárias para o desprendimento dos microrganismos da superfície das carcaças, a temperatura e volume de água ideais e o design dos equipamentos são de vital importância, não podendo-se reduzir a questão a simplesmente avaliar a quantidade de água utilizada no processo, na crença de que quanto mais água, melhor será o processo. A análise microbiológica desta água utilizada no processamento deve constituir-se em um importante elemento para o controle da qualidade microbiológica dos produtos finais produzidos no local.
3 O processamento como fonte de poluição da água
Os sub-produtos da produção e do processamento animal podem conter materiais sob a forma de carboidratos, gorduras e proteínas. Quando este tipo de material ingressa em um curso d’água, microrganismos presentes multiplicam-se rapidamente, e durante este processo utilizam-se de oxigênio dissolvido nesta água, o que pode ter como conseqüência a morte de peixes, além de outros efeitos indesejáveis. A Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO), a qual já foi definida anteriormente, é um dos parâmetros de medida do poder poluente potencial dos diferentes materiais eliminados. A título de exemplificação, a excreta animal comumente possui uma DBO de 20.000 mg/l, em comparação com 350 mg/l para esgoto não-tratado e 5 mg/l para uma água de rio limpa.
Os tipos de dejetos e sub-produtos produzidos nos diferentes estágios do processamento são mostrados na Tabela 1, e incluem a manutenção das aves nos caminhões para que descansem até que chegue seu momento de seguir para o abate, quando então ocorre a recepção dos animais na plataforma. A quantidade de dejetos e volume de água gerados nestes momentos dependerá da defecação e perda de penas que estes animais produzirem no local. A lavagem destas áreas, além das caixas de transporte e dos próprios caminhões, demanda normalmente uma grande quantidade de água, a qual contribuirá com o volume total de efluentes a serem tratados na planta. Somente para a limpeza das caixas de transporte dos frangos em um abatedouro de tamanho médio, há um dispêndio estimado de 12,7 m3 (12.700 litros) de água por dia, com uma concentração de 900 mg/l de DBO.
Posteriormente, tem-se o sacrifício e o sangramento dos animais, operação que envolve a separação do sangue, pelo seu alto valor como sub-produto. Seu volume é estimado em 6-8% do peso dos animais, sendo o sangue considerado como tendo o mais alto nível de DBO dentre todos os tipos de dejetos avícolas, com um valor de >90.000 mg/l. Por força de ser o sangue um elemento altamente poluente, sua adequada remoção diminuirá grandemente o total de dejetos produzidos pela planta, sem no entanto ser possível evitar alguma perda de sangue nos processos posteriores, além de haver a necessidade de lavagem dos locais e equipamentos periodicamente. Um bom procedimento de recuperação do sangue na planta pode representar até 40% a menos de carga poluente nos efluentes. Já na escalda e no depenamento,há a necessidade de renovação em torno de 5-8 L de água por ave, enquanto seu conteúdo poluente varia em torno de 1.000-1.500 mg/l DBO, dependendo da qualidade dos processos anteriores. As penas, que representam 3-5% do peso vivo dos frangos, são retiradas e lavadas pela água até os coletores, onde chegam com quase 80% de água no seu conteúdo, com uma DBO estimada entre 1.000 e 1.800 mg/l. Posteriormente, há a evisceração e a lavagemdas carcaças, onde coração, moela e fígado são retirados e levados por corrente de água até depósitos, para serem posteriormente separados e processados. Paralelamente, os intestinos também sofrem semelhante processo de separação, tendo no entanto outra destinação. Evidentemente, a possibilidade sempre presente de rompimento de intestinos durante o processo pode representar um significativo aumento na quantidade de microrganismos liberados nos efluentes da planta. A evisceração é responsável por cerca de 1/3 de toda a carga poluente liberada, já que mesmo após a filtragem a água poderá conter pequenos pedaços de tecido, gordura, areia e resíduos de sangue. Isto equivaleria a uma DBO de 1.700 a 2.600 mg/l para os efluentes gerados pelo processamento das vísceras. Estima-se a necessidade de pelo menos 2 litros de água por ave, neste processo. Finalmente, há o resfriamentoo qual servirá para retardar o crescimento bacteriano no produto, tanto aquele responsável pela diminuição do tempo de prateleira do produto quanto aquele referente a microrganismos patogênicos como a Salmonella. A legislação da União Européia exige a utilização de uma quantidade de até 6 litros de água por ave nesta etapa do processamento. Durante esta etapa, a qual pode facilitar a contaminação cruzada entre as carcaças, quantidades de matéria orgânica, gordura e pequenos pedaços de pele continuam a ser lavados e misturados à água dos chillers, o que pode representar até 8% da DBO total do abate, com valores que vão desde cerca de 1.000 mg/l no pré-chiller a 750 mg/l no chiller. O processamento posteriordos produtos, com cozimento e preparação de alimentos prontos para comer e com maior valor agregado, significam uma maior demanda por água, tanto para sua preparação como para a limpeza dos utensílios e do equipamento, processos os quais geram consideráveis quantidades de pedaços de carne e gordura bastante pequenos, comprometendo ainda mais a carga dos efluentes a serem tratados.
A limpeza da planta
propriamente dita é também de enorme importância, podendo haver grande variação devido a peculiaridades de cada abatedouro. Deve-se destacar a importância da utilização de detergentes e produtos de limpeza que sejam biodegradáveis e que não interfiram com o tratamento dos efluentes. Os hipocloritos e alguns derivados da amônia quaternária reagem com a matéria orgânica, formando substâncias inativas. Estima-se que a água utilizada para a lavagem das instalações represente uma DBO de cerca de 2.500 mg/l.
A quantidade total de água utilizada no processamento industrial de frangos de corte permite um elevado grau de variação entre as estimativas, em grande parte pela não especificação da extensão da reciclagem desta mesma água dentro da planta. No entanto, é possível estabelecer valores que vão desde 10 até 55 litros de água por ave. No Brasil, segundo Northcutt e Russell (1998), os abatedouros de aves utilizam, em média, cerca de 15 litros de água por ave processada, sendo este valor quase a metade da quantidade média utilizada, por exemplo, nos EUA (26 litros/ave). Em uma planta que abata cerca de 300.000 aves por dia, no Brasil, isto ainda assim representaria a necessidade de um suprimento diário de 4500 m3 de água potável (4,5 milhões de litros). A legislação brasileira (Regulamento Técnico de Inspeção da Carne de Aves, do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal - DIPOA do Ministério da Agricultura e do Abastecimento - MAA, 1997) prevê o uso de 30 litros/ave, permitindo no entanto o uso de volumes inferiores, desde que aprovados pelo DIPOA.
4 O tratamento e a testagem da água utilizada no abatedouro
Os métodos para tratamento da água utilizada no abate e também o design dos equipamentos destinados ao uso industrial têm tido uma evolução muito rápida, sendo que muitos deles já estão em uso em plantas avícolas. O tratamento poderá ser bastante simples ou complexo, dependendo da consciência ambiental da empresa e também especialmente da legislação existente. Problemas adicionais podem ser os períodos de pico de produção e a diferença na composição da água produzida durante a produção e durante os períodos de limpeza da planta. Por outro lado, a possibilidade de uso adequado dos sub-produtos (penas, sangue e vísceras) para alimentação animal por parte da indústria pode tornar-se difícil no futuro, já que a opinião pública nos países industrializados está se voltando contra o uso destes sub-produtos para este fim, mesmo após o tratamento por calor, até agora o principal método utilizado para a reciclagem destes materiais. Esta prática diminui consideravelmente a quantidade de dejetos que seriam misturados aos efluentes, sendo hoje um dos principais fatores que contribuem para manter limpo o meio-ambiente. Basta lembrar que somente nos EUA, a indústria recicla aproximadamente 20 milhões de toneladas de sub-produtos do abate e processamento de animais (bovinos, suínos e aves). Uma estimativa do destino dos sub-produtos do processamento avícola na Holanda é mostrada na Tabela 2.
Freqüentemente, o problema se coloca em termos de administrar a necessidade de cumprir a lei e de evitar, por seu descumprimento, um possível fechamento da planta, a partir de ações cada vez mais comuns por parte das comunidades locais, mas não descuidando da preservação da competitividade econômica da empresa, sem a qual a mesma se vê limitada na sua capacidade de buscar ativamente soluções tecnológicas para o problema, além de restringir seus mercados.
Quanto ao tratamentoda água utilizada na planta, este tem o objetivo de possibilitar a introdução dos efluentes tratados no ambiente, sem levar à poluição do mesmo, sendo este processo realizado a um custo que seja compatível e não inviabilize a operação lucrativa da planta de processamento. Os efluentes deverão ser, normalmente, peneirados para a remoção de pedaços de carne, penas e vísceras que foram lavados no processo. Posteriormente, usam-se retentores de gordura em tanques, onde a mesma sobe para a superfície e é então removida e reprocessada. Finalmente, lagoas ou tanques de sedimentação auxiliam na remoção de sólidos, os quais ficam no fundo e devem ser removidos periodicamente. Uma filtração final para retirar partículas finas em suspensão e um tratamento químico e/ou biológico posterior visam reduzir a quantidade de elementos indesejáveis, como os nitratos, e também reduzir os níveis de DBO da água e a presença de microrganismos para dentro de limites aceitáveis para a descarga no sistema de tratamento público, ou mesmo para possibilitar o reaproveitamento da água pela própria planta. Estes tratamentos incluem a aeração para ativar as bactérias, na qual agitação mecânica dos efluentes tem lugar em grandes reservatórios, ou por filtração, onde as bactérias também agem sobre os dejetos. Possíveis tratamentos químicos incluem a adição de cal, formalina, persulfato de amônia ou ácido fórmico, entre outros. Ao final, uma cloração desta água pode ser realizada para eliminar os microrganismos patogênicos como coliformes fecais e as salmonelas.
A testagem da água
utilizada deverá ser realizada tanto naquela que é recebida para uso no processamento (na entrada e nos pontos de uso) quanto nos efluentes que deixam o sistema de abate. No caso da água que chega na planta, esta deverá ser testada pelo menos uma vez ao ano, devendo os pontos de uso dentro do sistema serem testados pelo menos uma vez ao mês para suas características microbiológicas. Qualquer variação nos parâmetros de qualidade da água deve ser investigada, e uma possível deterioração pode levar ao bloqueio de partes das instalações até que o problema seja resolvido, podendo chegar ao fechamento da própria planta, se os limites de segurança da qualidade da água forem largamente ultrapassados. Coliformes podem até ser eventualmente encontrados na água, desde que em pequeníssimas quantidades e muito infreqüentemente. Já a presença de Escherichia coli, estreptococos fecais ou clostrídios sulfito-redutores indicam que a água não está em condições de uso. O Ministério da Saúde do Brasil, através da Portaria no. 36/90, regulamenta as normas de potabilidade de águas destinadas ao consumo humano no território nacional, sendo que esta demanda níveis de qualidade que proíbem a presença de coliformes fecais em 100 mL de amostra, e também de coliformes totais em 100 mL de amostra, quando esta for coletada da rede de distribuição. Mesmo no caso de água não canalizada e sem tratamento (poços artesianos, fontes, nascentes, etc.), apenas em 5% das amostras coletadas há a tolerância da presença de até 10 coliformes totais em 100 mL da amostra. A freqüência de coleta deverá ser no mínimo semanal, podendo chegar a ser realizada mais de 3 vezes ao dia, quando abastecer mais de 100 mil pessoas. A água para uso em abatedouros no Brasil não deve demonstrar, na contagem global, mais de 500 microrganismos por mililitro e 22 coliformes totais por grama de amostra (art. 62 do Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal - RIISPOA - do MAA). No entanto, em outros países como os EUA e o Reino Unido, a água a ser usada no abatedouro deve ter a mesma qualidade exigida para a água destinada ao consumo humano.
5 A prevalência de Salmonella na água utilizada no abatedouro
Provavelmente em função da existência de todos estes elementos de controle indiretos descritos anteriormente, não é de todo surpreendente as pouquíssimas referências específicas registradas na literatura, em especial a da área avícola, relativamente à presença de salmonelas nos efluentes de abatedouros avícolas. De certa forma, isto também se deve às características deste microrganismo, reconhecidamente um mau competidor em relação a outros presentes na natureza. Os efluentes de abatedouro, possuem quantidades muito mais elevadas de outros microrganismos, os quais são inclusive utilizados para possibilitar a fermentação dos dejetos, obtendo-se ao final um produto passível de ser utilizado como adubo ou mesmo uma água capaz de ser retornada ao ambiente. Há uma preocupação muito maior atualmente com a testagem e verificação da presença de salmonelas nos diferentes pontos do processamento dentro do abatedouro. Tanto isto é verdade que normalmente o Serviço de Inspeção Federal brasileiro procede uma coleta mensal de amostras de água de vários pontos fixos dentro do frigorífico (plataforma, abate, sala de cortes, graxaria, etc.), enviando os mesmos para análise no laboratórios oficiais do MAA (LARA). As únicas amostras oficiais realizadas com os efluentes dos abatedouros no Estado do Rio Grande do Sul são as realizadas semanalmente pela Fundação Estadual de Proteção ao Meio Ambiente (FEPAM), a qual limita-se a medir a DBO, não detendo-se em parâmetros microbiológicos que avaliem, por exemplo, a presença de patógenos como a Salmonella. Fica-se, portanto, na dependência da testagem extra-oficial que pode ou não ser realizada pelas próprias empresas. Estas, no entanto, normalmente concentram sua preocupação na qualidade microbiológica dos sub-produtos do processamento, como por exemplo as farinhas de pena e sangue e de vísceras, as quais são coletadas e analisadas semanalmente pelas empresas e mensalmente pelo MAA. Estes sub-produtos, embora submetidos a tratamento térmico que deveria eliminar a presença de salmonelas, com muita freqüência são dados como positivos para as mesmas, o que denota uma possível contaminação cruzada pós passagem pelo digestor. Da mesma forma, sabe-se que a presença de Salmonella nas aves que entram no processo de abate será muito provavelmente amplificada pela contaminação cruzada determinada pelo contato com superfícies e líquidos do próprio processo, o qual foi desenvolvido para justamente atingir um efeito oposto, de diminuição da carga microbiana. Autores consideram a possibilidade de um lote com 5% de positividade para Salmonella na chegada à plataforma poder ter parte de seu produto final correspondente apresentando mais de 20% de positividade, dependendo das condições de cada planta.
A partir destes dados, não pode haver complacência no sentido de minimizar a possibilidade de haver a presença de Salmonella nos efluentes do processamento, já que todas as etapas do mesmo envolvem o uso e a descarga de grandes quantidades de água, tanto para o processo em si como para a limpeza das instalações, como já foi descrito anteriormente.
Em geral, os trabalhos falam em contaminação ambiental, muito raramente discriminando a água, em especial a dos efluentes de abatedouro (com a possível exceção para a água para o consumo humano). Trabalham normalmente com contagens de coliformes e DBO, como screening, verificando assim, indiretamente, a possibilidade de haver a presença de salmonelas. Entretanto, nem sempre a densidade da presença de microrganismos indicadores é capaz de refletir a segurança microbiológica da água, já que, sob algumas circunstâncias, bactérias patogênicas podem ser isoladas de águas contendo poucos coliformes, havendo inclusive trabalhos que detectaram situações onde houve uma baixa correlação entre estes dois parâmetros (Tobias & Heinemeyer, 1994). Paralelamente a isto, estes pouquíssimos dados disponíveis sobre a condição microbiológica dos efluentes no tocante à presença de Salmonella refletem uma quase total preocupação com a água captada para uso na planta, e não tanto com o resultado do tratamento desta mesma água após o seu uso no abate, a qual passará por cursos d’água antes de ser reaproveitada, podendo pois causar problemas de contaminação ambiental. Exemplos de problemas advindos do lançamento de dejetos avícolas em rios são abundantes, sendo um dos mais notórios o último surto de Doença de Newcastle registrado do Estado do RS, no início dos anos 80, onde o surto se alastrou através da água do rio onde eram jogados detritos e dejetos das aves mortas pela doença, água esta que era utilizada por outros criadores da região.
As conseqüências da presença de Salmonella na água podem ser graves, como provam os vários incidentes como os surtos ocorridos no Estado de Nova Iorque (EUA) em 1976, com 750 casos de intoxicação em humanos por S. Typhimurium presente na água, e como os freqüentes casos ocasionados pelo consumo de ostras contaminadas especialmente por S. Typhi, as quais haviam sido criadas em reservatórios de água contaminados com dejetos humanos e animais. A possibilidade, cada vez mais presente, da disseminação da criação de peixes com restos provenientes de suínos e aves é extremamente preocupante, principalmente por haver esta carência de dados referentes à presença de salmonelas nos dejetos e efluentes, os quais podem vir a ser utilizados in natura diretamente na criação destes peixes. Da mesma forma, os cada vez mais freqüentes relatos de aumento na resistência a antimicrobianos em amostras de Salmonella sp. isoladas de aves no Brasil (de 46,1% em 1983 para quase 70% em 1998, de acordo com Seki et al. (1999)) têm grande significância de saúde pública, já que a passagem desta resistência através de plasmídios para humanos, a partir do consumo de produtos de origem animal, deve merecer toda a atenção.
É geralmente aceita a pouca probabilidade de haver multiplicação de salmonelas em águas relativamente limpas, situação que pode mudar no caso de águas poluídas, onde exista uma adequada presença de nutrientes, pH e temperatura, a partir dos quais pode haver uma lenta multiplicação desta bactéria.
Têm-se abundantes dados que indicam a presença de Salmonella nos frangos antes do abate, nos diversos pontos críticos dentro da linha de abate, nos produtos finais e nas farinhas (sub-produtos - graxaria). É lícito supor-se portanto que também deveríamos encontrar mais freqüentemente a bactéria na água que deixa a planta. As causas pelas quais a presença de Salmonella não é tão reportada podem ser várias, as mais importantes sendo o tratamento a que são submetidos os efluentes, as enormes quantidades de bactérias competidoras que inviabilizariam a multiplicação daquela, a qual não chegaria a atingir níveis detectáveis e que pudessem causar problemas, havendo inclusive a possibilidade da mesma não sobreviver por períodos muito longos, em determinadas circunstâncias. Finalmente, a normalmente pequena amostragem (uma amostra) e a relativamente baixa periodicidade (uma vez ao mês, às vezes uma vez ao ano) também não contribui no sentido de ter-se um conjunto de dados mais confiável neste aspecto.
Alguns trabalhos publicados em diferentes períodos abordando o aspecto referente à presença de salmonelas nos efluentes, cursos d’água e água potável são apresentados na Tabela 3.
O crescente aumento de dejetos animais resultante da constante expansão da indústria avícola tem contribuído sobremaneira para o problema do tratamento e destino destes dejetos. A possibilidade de contaminação de humanos a partir do consumo de água de má qualidade em razão da contaminação ambiental produzida pela indústria de alimentos tem colocado esta última sob pressão da opinião pública, devendo lidar com este volume cada vez maior de efluentes, sem deixar de cotejar os critérios de consciência ambiental com os custos de tratamento dos dejetos, preservando a lucratividade sem afetar a imagem da empresa. Uma previsão quase óbvia é de que o consumidor, estando cada vez mais atento às questões ambientais, deverá no futuro eleger este como um dos principais parâmetros a serem levados em conta pela população na hora de escolher suas marcas preferidas nas gôndolas dos supermercados. Caberá aos governos e às próprias indústrias encontrarem um denominador comum em termos de legislação e disposição em melhorar as condições ambientais, o que permitirá uma convivência não destrutiva com os recursos naturais disponíveis.
As referências bibliográficas utilizadas podem ser obtidas por e-mail junto ao primeiro autor.
6 Agradecimento
O primeiro autor gostaria de agradecer ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão de bolsa de produtividade em pesquisa.