A produção mundial de carne deve dobrar no período 2000-2050 (Steinfeld et al., 2006). Paralelo a esse crescimento observa-se o reduzido conhecimento dos consumidores sobre a necessidade de recursos naturais e os impactos ambientais associados aos alimentos que consomem (Naylor et al, 2005;. Hoekstra, 2010). O conceito da pegada hídrica proporciona aos consumidores o conhecimento de como as produções pecuárias se relacionam com a água e como os atores das cadeias produtivas podem promover a gestão e conservação do recurso natural.
Ultimamente, tem-se divulgado valores da pegada hídrica das atividades pecuárias, Tabela 1. Os valores não estão sendo entendidos pelas cadeias produtivas e pela sociedade devido ao reduzido conhecimento que esses têm do método, além de gerarem conflitos entre as cadeias produtivas e segmentos da sociedade que defendem a redução do consumo ou o não consumo dos produtos animais devido à necessidade hídrica de se produzi-los.
Tabela 1- Valor da pegada por categoria animal e sistema de produção (Gm3/ano).
Os valores da Tabela 1 são médias mundiais, portanto para calculá-los faz-se muitas inferências e determina-se médias nacionais. Certamente, para países com dimensões continentais e diversos sistemas de produção como o Brasil, o melhor valor será aquele calculado, considerando as realidades produtivas brasileiras. Isso não invalída as médias globais, pois um dos objetivos do cálculo da pegada é atingido, explicitar a íntima relação entre produção de proteína animal e recursos hídricos. Chapagain & Hoekstra (2003; 2004), a pegada hídrica das atividades pecuárias variam muito entre países e sistemas de produção. O sistema de produção é altamente relevante para o valor da pegada, composição e distribuição geográfica desta. Da mesma forma, o país em que o produto é produzido influencia o valor.
O cálculo da pegada de uma atividade pecuária considera os seguintes consumos: água para produção dos alimentos que serão fornecidos aos animais; dessedentação e serviços (limpeza e resfriamento das instalações); água necessária para diluir os efluentes da produção; água consumida no processamento e abate dos animais. O método entende consumo como a extração de águas superficiais e subterrâenas em determinada unidade hidrográfica, quando a água é evaporada na produção das culturas vegetais (processo de evapotranspiração), quando a água retorna para outra unidade hidrográfica que não a sua unidade de origem ou para o mar e quando está incorporada a um produto. A pegada pode ser expressa em: m3/ano/animal, m3/animal e m3/kg de produto.
É possível que a pegada seja calculada sem considerar todos esses consumos, podendo ter como “fronteira” a unidade produtiva, região, Estado ou país. Portanto, na interpretação do valor deve estar claro o que foi considerado no cálculo e qual a “fronteira”. Sem esses esclarecimentos a interpretação do valor conduz a erros.
O cálculo também determina o consumo de água verde (água da chuva, não considerarando a água que escorre ou infiltra a qual não é utilizada pela cultura agrícola); água azul (extraída de fontes superficiais e subterrâneas e utilizada na irrigação das culturas, dessedentação dos animais e serviços); água cinza (definida como o volume de água necessário para diluir os efluentes da atividade pecuária, considerando os padrões ambientais e legais dos corpos d’água). Portanto, a pegada hídrica é composto por componentes indiretos (água utilizada na produção dos alimentos) e diretos (água consumida na dessedentação e serviços) (Chapagain e Hoekstra, 2003, 2004).
O uso do método traz a discussão outros conceitos que cada vez mais estarão presentes no dia a dia das produções e serão questionados pela sociedade. O conceito de produtividade de água, relação entre a quantidade de produtos produzidos pela quantidade de água utilizada para gerar esses produtos, é o de maior importância no momento e entendido como um indicador de desempenho hídrico de uma atividade.
Pegada Hídrica das aves de corte.
Apresenta-se o cálculo da pegada hídrica das aves abatidas nos Estados da Região Centro-Sul do Brasil no ano de 2010, Tabela 2. O trabalho não apresenta informações para o Distrito Federal e Mato Grosso do Sul devido à falta de dados na base da Pesquisa Trimestral de Abate de Animais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Neste estudo se utilizou a metodologia proposta por Chapagain & Hoekstra (2003) que considera para o cálculo: água consumida na produção de grãos (milho e soja), água de dessedentação e a água utilizada no resfriamento e limpeza das instalações. Sabe-se que há diferenças construtivas e de uso de equipamentos entre as regiões devido às condições climáticas e características produtivas. Nos Estados das regiões Sul e Sudeste adotou-se como padrão produtivo: aviários semiclimatizados, ventilação com pressão positiva, mas sem nebulização; com 1.200 m²; densidade de 11,8 cabeças/m2 ao final do lote. Nos Estados da região Centro-Oeste adotou-se como padrão produtivo: aviários climatizados com pressão positiva, ventilação e nebulização; com 1.500 m²; densidade de 11,3 cabeças/m2 ao final do lote. Nesses Estados utilizou-se o consumo de 2,0 L/cabeça para o resfriamento da instalação (Miele et al., 2010).
Tabela 2 - Pegada hídrica das aves abatidas por Estado no ano de 2010.
Os dados demonstram que a maior parte do consumo de água para produção de aves de corte se dá no cultivo dos grãos, ou seja, no consumo de água verde. A mesma realidade será observada no cálculo de qualquer outra atividade pecuária conforme demonstram os estudos. Portanto, a gestão hídrica da atividade pecuária está intimamente relacionada com a gestão hídrica da atividade agrícola. Quanto mais eficiente for a agricultura no uso da água, menor será a pegada das proteínas animais. Políticas, programas e leis ambientais terão maior eficiência e eficácia se forem elaboradas e implantadas tendo uma visão sistêmica, pois o meio ambiente insere conexões complexas. O cálculo da pegada das aves demonstra essas conexões e complexidades, ou seja, a grande dependência de água verde e de práticas agrícolas eficazes.
O baixo impacto no valor da pegada do consumo de água azul não significa que manejos hídricos não devam ser internalizados nas unidades produtivas a fim de melhorar a eficiência de uso do recurso natural. Toda propriedade está inserida em uma bacia hidrográfica, espaço físico no qual se dará a extração das águas superficiais e subterrâneas. A bacia pode apresentar problemas de escassez e a atividade deve ter a outorga de uso e pode ter que pagar pelo volume de água que capta, consome e pela qualidade em que essa é devolvida para natureza. Portanto, ser eficiente no uso da água trará benefícios econômicos, sociais e ambientais, além de impactar no valor da pegada.
Os Estados do RJ e ES apresentaram baixos valores para a pegada devido aos seus rebanhos reduzidos, mas tiveram as piores eficiências hídricas, resultado das baixas produtividades nos cultivos de milho e soja.
As melhores eficiências foram verificadas para os Estados do PR, SC e GO, pois esses têm tradição produtiva no cultivo de grãos e apresentaram as mais altas produtividades para o ano de estudo. Deve-se destacar que o Estado de SC não produz toda soja e milho que necessita para alimentar seus rebanhos, importando grandes quantidades do PR, MS e MT. Essa realidade insere outro conceito que permeia o cálculo da pegada que é o de água virtual. No Brasil há um fluxo hídrico entre os Estados na forma de commodities agropecuárias. O cálculo da pegada proporciona o conhecimento desse fluxo, possibilitando a melhor tomada de decisão quanto à gestão dos recursos hídricos brasileiros. O Brasil também é um dos maiores exportadores de água virtual do mundo.
Ferramentas que propiciam o estabelecimento dos fluxos hídricos de uma atividade produtiva, visando a eficiência no uso do recurso natural devem ser avaliadas, pois auxiliarão na sustentabilidade da atividade. A pegada hídrica é uma metodologia em construção e ainda de baixo entendimento, mas diversos estudos estão sendo gerados a fim de aprimorar o método e internalizá-lo na sociedade. Com isso, os conflitos relacionados aos valores da pegada serão minimizados. O Brasil, como grande produtor de aves de corte, não pode deixar de utilizar métodos que atestem a qualidade ambiental de sua produção. Se a cadeia não fizer isso, outros farão, pois consumidores e competidores estão ávidos por esse tipo de informação.
Literatura Citada.
CHAPAGAIN, A.K.; HOEKSTRA, A.Y. Virtual water flows between nations in relation to trade in livestock and livestock products. Disponível em: http//www.waterfootprint.org/Reports/Report13.pdf. Acesso em: mar. 2010.
CHAPAGAIN, A.K.; HOEKSTRA, A.Y. Water footprints of nations. Disponível em: www.waterfootprint.org/Reports/Report16Vol1.pdf. Acesso em: abril 2010.
CHAPAGAIN, A.K.; HOEKSTRA A.Y. Virtual water flows between nations in relation to trade in livestock and livestock products. Netherlands: UNESCO-IHE, 2003. 198p.
HOEKSTRA, A.Y. The water footprint of animal products, In: D´Silva, J. and Webster, J. (eds.) The meat crisis: Developing more sustainable production and consumption, Earthscan, London, UK, p. 22-33. 2010.
MIELE, M. et al. Coeficientes técnicos para o cálculo do custo de produção de frango de corte, 2010. Disponível em: http://www.cnpsa.embrapa.br. Acesso em: 25 mar. 2011.
NAYLOR, R.; STEINFELD, H.; FALCON, W.; GALLOWAY, J.; SMIL, V.; BRADFORD, E.; ALDER, J.; MOONEY, H. Agriculture: Losing the links between livestock and land, Science, n.310, p.1.621-1.622. 2005.