Ando em uma fase de muitas viagens, algumas longas o suficiente para concluir que a melhor linha aérea do mundo chama-se classe executiva, onde tens espaço para esticar as pernas e mesmo dormir (esqueçam a comida, que é identicamente ruim). As poltronas lembram as da primeira classe de quando viajei pela primeira vez, enquanto que as poltronas da turística pioraram muito, exíguas, abaixo do mínimo necessário ao mínimo necessário, uma garantia de desconforto, insuficiência, dores nas pernas, noite mal dormida e dia subseqüente imprestável. Não sei se ficaram menores ou se eu fiquei maior, ou se fiquei mais crítico, a ponto de achar que viramos carga. Fico imaginando o que acontecerá nesse novo Airbus que consegue acomodar 800 pessoas (ou peças de carga) e adoraria não ter que descobrir, mas consciente que possivelmente não terei esse privilégio.
E o que isso tudo tem a ver com avicultura, suinocultura ou carnes em geral? É apenas para demonstrar ao leitor que, ao contrário dos brasileiros que não buscam melhores taxas de juros mudando de banco – pronto Vice-Presidente Alencar, o Senhor já tem a causa dos juros altos no Brasil -, eu ando tirando o meu traseiro da cadeira. Ando tirando o traseiro, mas não é só para mudar de banco, o que, aliás, estou fazendo, não por juros, mas por que o meu futuro ex-banco trata micro-empresário com micro-consideração.
Quem precisa de clientes quando tem o governo a tomar todo o dinheiro disponível a > 19% ao ano para financiar a modernização dos nossos portos, a nossa excelente malha viária, a saúde pública impecável, a excelência da educação pública de corar coreano, a total segurança do cidadão, o aparato judiciário célere e moderno e um legislativo à altura do que necessitamos? Uma mínima parcela, naturalmente, vai para os contidos gastos públicos. Como vocês vêem, acabei de sair das viagens internacionais, que machucam o traseiro, para me lembrar do governo brasileiro, e não sei por que fiz a associação entre traseiro e governo. Voltemos com o meu traseiro ao assunto das viagens, que se explicam pela grande admiração, curiosidade e, em alguns casos, revoltas que o progresso do Brasil na produção e exportação de carnes tem provocado.
Tenho sido contratado cada vez mais para explicar no exterior, em conferências e debates, o milagre brasileiro das carnes, visto com admiração por poucos, reservas por alguns, preocupação por muitos e, pelos protecionistas de plantão, como um mal a ser contido e extirpado. A primeira coisa que esclareço nessas conferências é que não há razão para o espanto, já que há muito se verificava uma migração da produção e consumo de carnes para os países em desenvolvimento. Não é, portanto, de se espantar que a exportação siga o fluxo da produção e a importação o do consumo. Em dois artigos anteriores (“A evolução do mapa mundi avícola”, de 2004, e “As Carnes no Mundo em 2005”) abordei esse aspecto, que nada mais é do que fruto de observação da evolução do processo desde 1965, data a partir da qual passamos a ter estatísticas globais, seja via FAO ou seja via USDA.
Essa tendência se verifica em todas as carnes produzidas e consumidas no mundo, quantificadas abaixo por seus totais em 2004:
Em todas as espécies, quando analisada a evolução de 1965 a 2004, verificaremos que essa migração dos países desenvolvidos para a produção nos países em desenvolvimento está presente. A título exemplificativo, apresentarei abaixo os dados relativos às 3 principais espécies, carne suína, de frango e bovina:
Quando estudamos o passado recente (a média da produção anual 1979-81 e 1997-99), os dados de 2004 e mais as projeções da FAO para 2010, 2015 e 2030, concluímos sobre a irreversibilidade dessa tendência.
Essa tendência ocorre por inúmeros fatores, tais como a destinação de terras agriculturáveis nos países desenvolvidos a fins mais rentáveis, menores contingentes populacionais empregados em agricultura nesses países, menor expansão demográfica dos países desenvolvidos, surgimento de novos eixos produtores capazes de atender a demanda de carnes a preços decrescentes e outros. Não há dinheiro a ser ganho produzindo carnes na grande maioria dos países desenvolvidos, embora haja dinheiro a ser ganho em marketing, comercialização e distribuição de carnes e fortunas a serem feitas com subsídios. Na medida em que não haja subsídio para produzir além das necessidades do país, gerando excessos de estoque que são despejados nos mercados internacionais a preços de dumping, restará ao segmento cárnico dos países de produção artificialmente protegida buscar alternativas.
Essas existem e não são necessariamente severas, tais como contentar-se com ganhar dinheiro em produzir especialidades frescas e de elevado valor regional e auferir dos ganhos passados, presentes e futuros que marcas sólidas, marketing competente, comercialização e distribuição profissionais asseguram. Por que haveria os países desenvolvidos destinarem recursos valiosos para produzir carnes quando ela pode ser obtida no mercado internacional, nas especificações que querem, na forma em que querem e a preços crescentemente atraentes, sobretudo quando as pressões internacionais os obrigam a relutantemente rever suas políticas de subsídios?
A essa nem sempre agradável constatação para uma potência produtora cárnica como o Brasil, quantificada no quadro acima, somam-se outros fatores, mas antes de abordá-los vamos nos deter na questão de preços que sempre interessa a todos nós. Quer dizer que os países em desenvolvimento estão condenados a ter que vender cada vez mais quantidade para dispor do mesmo valor? A resposta para carnes é sim, como o é para qualquer commodity, o que não significa que seja uma equação tão perversa quanto aparenta, pois estamos entre os atores que ajudam a promover essa progressiva redução de preços. Muito do dinamismo de expansão de produção de carnes, mormente aquelas produzidas a partir da conversão de grãos em proteína animal, parte de atores nos países que possuem excedentes de grãos a valorizar estes transformando-os em carnes.
Esses atores buscam, com a carne, valorizar os grãos que produzem, melhorando o valor dessas commodities, mesmo se nesse processo finalizam por “commoditizar” as carnes. Tal ocorre majoritariamente em países em desenvolvimento, mas com alguns exemplos entre os países desenvolvidos. Não é uma equação fácil e poderia ser menos perversa, mas se insere entre as realidades do nosso mercado ou das regras do jogo. Para os grupos produtores de carnes que se originam da produção de grãos, sua maior motivação não é a carne, mas valorizar o grão. Quem é como eu nascido e criado na carne, custa entender por que um abatedouro vende um corte de frango ou de suíno a um preço inferior ao praticado no mercado nacional ou internacional. Na lógica de quem raciocina com grãos faz todo o sentido do mundo, pois para ele não está reduzindo o preço do frango de R$ 1,40 para R$ 1,35, mas sim melhorando sua venda de milho de R$ 18,00 para R$ 18,65 ou do seu farelo de R$ 0,492 para R$ 0,510.
Vamos sair um pouco da temática de preços das carnes tendendo ao decréscimo e examinar outros fatores que explicam a migração das produções e comercialização para os países em desenvolvimento. Comecemos pela expansão demográfica mundial, que quase se concentrará exclusivamente nos países em desenvolvimento.
Esta é uma verdade passada, uma realidade do presente e que, conforme demonstram as projeções, se agravará no futuro. Os países desenvolvidos reduziram muito suas taxas de natalidade, a ponto de já ser possível identificar pontos de estrangulamento em suas economias por falta de gente, com todas as repercussões que tal gera para uma massa de aposentados progressivamente longevos. Ada a essa situação o debate entre cor da pele ou cor do dinheiro, pela relevância dos contingentes de imigrantes para a economia de algumas nações desenvolvidas.
Uma das premissas do crescimento da demanda está em haver quem consuma e taxas de expansão demográfica de 0,4% ou 0,2% dos países desenvolvidos não garantem a agregação necessária, além de gerarem um envelhecimento da população que também afeta o consumo desfavoravelmente.
É evidente que não bastará aos países em desenvolvimento aumentar seus contingentes populacionais sem expansão de renda, pois a resultante seria o aumento daqueles condenados à miséria. O mais relevante dos dados são os que projetam também um aumento estimulante da rendas, de 3,7% a 4,4% anual.
Ainda que a base de partida dessa expansão seja baixa, o binômio aumento demográfico e aumento de renda provocará maior dinamismo do consumo nos países em desenvolvimento e, como conseqüência, estimulará neles a produção. O magnífico trabalho da FAO de agosto de 2002 (cf. ref.1) quantifica essa expansão, mas sobretudo revela o absoluto principal e essencial: não serão os países desenvolvidos comendo 90 kg per capita ano que serão o motor da indústria no futuro, pois dificilmente alcançarão um consumo per capita de 150 kg. Serão os países em desenvolvimento, com meros 25,7 kg de consumo per capita que acelerarão nossa indústria com o potencial de dobrar seu consumo nos próximos 40 anos.
O quadro abaixo demonstra que os países desenvolvidos alcançaram níveis dietéticos elevados, acima mesmo do recomendado pela boas normas de saúde e tornando em algum deles a “epidemia de obesidade” com uma das principais preocupações de saúde pública, enquanto regiões de países em desenvolvimento apresentam uma ingestão diária de alimentos insuficiente. Novamente, não serão os que comem 3.400/dia calorias que comerão 5.000, mas sim os que ingerem 2700 calorias/dia que se aproximarão das 3.000.
A expansão de demanda nos países em desenvolvimento superará a da produção desses países, gerando novos pólos importadores e alavancando o comércio internacional de carnes. Observem no quadro abaixo que se prevê um crescente déficit de abastecimento de carnes nos países em desenvolvimento.
E, logicamente, a produção e o comércio seguem a demanda. Significa isso dizer que os países desenvolvidos não têm qualquer futuro na produção e exportação de proteínas animais? A resposta é um redondo não, pois uma das grandes potências econômicas mundiais, os Estados Unidos, eram, são e seguirão sendo potências no agronegócio, inclusive carnes. Mas significa também dizer que surgiram novas potências cárnicas entre as nações em desenvolvimento, entre as quais China, México, Índia, Argentina e Brasil e que esse clube de grandes produtores será acrescido no futuro, no horizonte dessas projeções que examinamos hoje, pela Ucrânia e muito possivelmente pelo Kazaquistão.
É patente que entre as novas potências cárnicas surgiram algumas com franco destino exportador, como são os casos da Argentina (carnes bovina e de frango) e Brasil (carnes bovina, de aves e suína). Poderia acrescentar a essa lista a China, por sua importância na exportação de carne de aves, mas deixo-a de lado, pois a China é um universo em si mesma e será cada vez mais a grande mola propulsora da demanda no mundo. O Brasil tem merecido o epíteto de lobo mau do mercado internacional de carnes pela rapidez da expansão de sua produção de carnes:
E por sua crescente participação nas exportações mundiais de carnes.
É evidente que essa rápida progressão provoca raras reações positivas, sobretudo entre os países que tiveram que ceder espaço, e nos fóruns internacionais tenho ouvido referências pouco elogiosas ao Brasil – lobo mau, ave de rapina, acompanhado de vocês não sabem vender, vocês deviam ser proibidos de vender, pois destroem as indústrias dos países onde entram, etc. Já respondi uma vez jocosamente que se os brasileiros não sabem vender, imaginem o que aconteceria no dia em que aprenderem.
Entretanto, se o crítico em questão tivesse dito que nós brasileiros não sabemos vender bem, teria que concordar com ele em gênero, número e caso, mas isso já é tema para outro artigo. Na realidade o Brasil é, nas palavras do USDA (cf.ref.5), uma potência agrícola, e seria pelo menos bizarro que não ascendesse em produção e exportação de carnes quando estas migram para os países em desenvolvimento. Dispomos de grãos, de clima, de extensão territorial, de mão-de-obra preparada, de tecnologia, de tradição da atividade, e nossos empresários insistem em investir resultados em seus próprios negócios.
Com essas condições, o espantoso seria se o setor cárnico brasileiro não tivesse progredido, como é espantoso o fato do Brasil seguir sendo o país do futuro, como já o era quando comecei a trabalhar, em 1970. O Brasil é o país do presente e do futuro para uma série de culturas e segmentos do agronegócio, entre os quais as carnes. Não estamos mais no mundo nacional em que me criei, mas num mundo globalizado e, por favor, não entendam como frase de efeito para arrancar aplausos “sic transit gloria mundi”. Mundo globalizado significa que os fatores de produção se deslocam para onde tiverem as condições mais favoráveis para assegurar competitividade global num mercado que se tornou global. O Brasil possui essas condições em carnes e o movimento incipiente de vinda de produtores globais para usufruírem dessas condições deverá se acentuar no futuro.
O setor brasileiro de carnes terá nos próximos 5 anos novos atores que falarão português com sotaque, para desespero dos nossos saudosistas de plantão mas também para desespero dos protecionistas de todas as nacionalidades, mesmo os bem intencionados que seguramente devem existir. Não será o Brasil o único país que acolherá produtores de carne em busca da competitividade ou da expansão de mercado que já não encontram em seus países natais. A Argentina, Chile, África do Sul, Índia, Filipinas, Indonésia, China, Ucrânia e Kazaquistão também os receberão. E é bom que os recebam. Serão bem-vindos lá como o serão aqui, pois antes de discutirmos tribalismos ou como ressuscitar o saudoso monopólio da Cia das Índias Ocidentais, nós do setor cárnico teremos que nos estruturar para produzir os 60 milhões de toneladas a mais por ano que o mundo necessitará para manter sua progressão de crescimento do consumo de carnes no ano 2015. E o Brasil não é o lobo mau do mercado internacional de carnes, até porque nesse mercado não há nem vovozinha e nem Chapeuzinho Vermelho, embora eu consiga identificar uma série de protecionistas que estão loucos para interpretar o papel do caçador.
Referências e Consultas: 12 3 4 561 Médium Term Projections for Meat and Dairy Production to 2010 - pelo Committee on Commodity Problems of the Intergovernmental Group on Meat and Dairy Products, Agosto de 20022 World agriculture: towards 2015/2030 - Summary report - FAO, 20023 Livestock to 2020 - The Next Food Revolution - por C.Delgado, M.Rosegrant, H.Steinfeld, S.Ehui e C.Courbois - International Food Policy Research Institute, Food and Agriculture Organization of the United Nations, Maio de 19994 "Meat Brazil", International Trade Report, june 2004, Commodity & Marketing Program, Foreign Agricultural Service, USDA5 USDA Agricultural Baseline Projection Tables, Fev 2005